home

search

Finalmente Desperta

  Tirando as coisas físicas, é difícil definir peso. Tempo possui duas defini??es: sequencial e qualitativo, um referente ao que pode ser contado em unidades e o outro se refere ao tempo percebido como longo ou curto, relativo por assim dizer. Peso é diferente, n?o há uma defini??o secundária para peso, ele é uma unidade fixa. E por mais que as pálpebras de Irina n?o devessem pesar mais que algumas poucas gramas, naquele instante pareciam mais pesadas que vigas de madeira. Certo que pálpebras s?o coisas físicas, mas dores, ainda que se manifestem no físico, n?o s?o algo que se pode medir, e no momento a dor em seu corpo deixa todos os seus músculos com o peso de quilos que ela jamais poderia fisicamente ter mesmo se vivesse uma vida de abundancias.

  Irina conseguiu se debater para os lados e acabou por rolar sobre sua barriga. Oh céus, como doeu, a ponto de fazê-la sugar ar para suprir um gemido, era tal quase como se estivesse pressionando sobre uma ferida aberta. Virando-se novamente, Irina encontrou o final da cama que estava deitada sobre. Cama que ela só percebeu por sentir sua falta, pois nem mesmo um tapete grosso pode amortecer uma queda com a mesma eficiência que um colch?o. Grunhindo de dor, Irina agarrou-se à beira do colch?o e se ergueu ao arrastar seu torso para cima, deixando suas pernas para fora, tentando aos poucos colocar for?a nestas para se erguer. O ch?o estava frio, mesmo que o tapete separasse sua carne do piso de madeira rangente, Irina sentiu um desconforto como se tocasse diretamente na neve.

  – ... Um... Dois... Três... Três e meio... Três e... Meio e meio?

  Irina contou, dando leves ergueres de seu corpo ao se for?ar na ponta dos pés, sua inten??o sendo se erguer ao contar de três, contudo seu corpo estava muito pesado para isto. Finalmente, seus olhos se abriram para encontrar a floresta de seus cabelos ruivos caindo perante sua fronte. Estavam limpos e soltos, até um pouco mais penteados do que se lembrava, e percebendo melhor, tinham o doce aroma morangos maduros no ponto de quase apodrecer, chegava a ser igualmente enjoativo também. Bem, isto n?o era importante, Irina n?o deveria achar isto importante no momento, n?o quando a cama que estava continha uma colcha com um padr?o desconhecido de folhas e flores bordadas belamente em linho. Aquilo era um estorvo, uma dobra feia de cores em sua vista turva e cansada, apesar da beleza que certamente n?o fora apreciada por ela, e principalmente significava que estava em um lugar desconhecido. Virando-se em suas costas, percebeu que antes ignorara a dor em sua coluna que agora a atacou com for?a total, fazendo-a trincar os dentes enquanto olhava para o teto. N?o tinha muito o que decifrar nele, apenas estava... Estranhamente claro para um c?modo fechado e sem fontes de luz aparentes: escuro, mas longe de ser um breu completo. Colocando-se sentada na cama, Irina percebeu que seu est?mago estava enodoado e sua cabe?a girando em algo que ela n?o estava certa se deveria ser chamada de tontura ou vertigem.

  – ... N?o é nem mesmo o quarto do lorde...

  Irina finalmente conseguiu criar coragem para tentar se erguer novamente, ainda que erguer seu corpo fosse um trabalho hercúleo, sen?o atlantico, naquele estado de anestesia completa. Percebendo a existência de um criado-mudo, usou-o de apoio para que finalmente se erguesse e apoiasse-se unicamente em seus dois pés. Curioso, o ch?o n?o parecia mais t?o frio. Co?ando seus olhos castanhos, Irina olhou para si mesma e n?o reconheceu a veste que trajava: uma camisola que lhe descia do pesco?o aos pés, linho perolado sem nenhum detalhe em particular, fechada por três tiras de tecido em nós frontais em uma abertura que ia de sua clavícula até a boca de seu est?mago. E considerando como as costuras do ombro caíam bem abaixo de seus ombros e as mangas parcialmente cobriam suas m?os, certamente era pertencente a alguém muito maior que ela em vários aspectos. A curiosidade tomou conta de si e acabou por observar seu próprio tórax por entre os seios e o que viu acabou por fazer sua voz se perder: Irina tinha um longo corte costurado com linha negra em sua barriga, o que a fez crer que n?o só teve a sensa??o de deitar em uma ferida, mas sim uma sensa??o bem apropriada. O rasgo certamente era fundo, considerando a carne inchada que se estendia até seu umbigo, aberta como um porco abatido para ter os órg?os removidos. Irina sentiu o reflexo para vomitar, mas o resto de seu corpo n?o reagiu... E só ent?o ela percebeu:

  Irina em nenhum momento respirou desde que acordou.

  Irina também n?o sentia mais seu cora??o.

  – ó Santíssima... Que desafios impuseste perante mim...?

  N?o era à toa que sentia como se estivesse morrendo, certamente estava morta, porém viva. Se pudesse respirar normalmente, talvez estivesse ofegante, desmaiando se possível! Como alguém poderia sobreviver a aquilo?!

  Mas... O que era “aquilo”?

  – Seja quem for que me trouxe para cá, pode ter boas inten??es ou n?o. Seja como for, n?o poderei mais ficar aqui.

  Irina olhou nos arredores do quarto e viu um pequenino casti?al de m?o com uma vela, assim como um peda?o de ferro e uma pedra que conhecia bem: sílex. Sem sequer hesitar, Irina friccionou a pedra e o metal próximos ao pavio da vela, felizmente suas m?os estavam funcionando perfeitamente. Oh, mas que bela chama era aquela, uma como Irina jamais tinha visto antes, quase a quis tocá-la tal qual como se tivesse voltado aos seus anos inocentes de infancia, antes de saber que a chama queimava. Aquela chama era particularmente forte, muito vívida, seria alguma propriedade diferente no pavio? Sacudindo sua cabe?a, decidiu que isto n?o era importante.

  Concentre-se Irina! Você quase morreu, está provavelmente morta numa casa desconhecida! N?o é hora de ficar olhando velas! Pensou ela.

  Irina tomou o casti?al em sua m?o esquerda, encaixando deu dedo polegar na argola lateral do prato do pequeno objeto para segurá-lo com firmeza, deixando mais liberdade para sua m?o dominante abrir a porta daquele quarto estranho. Seus pertences? Sabia que n?o os encontraria e sinceramente esta n?o era uma prioridade.

  If you spot this narrative on Amazon, know that it has been stolen. Report the violation.

  Uma vez que abriu a porta para um longo corredor sem fontes de luz ou janelas sem estarem seladas com tábuas de madeira, Irina inalou ar fortemente para recolher coragem e seguir pelo solo carpetado em um tecido um pouco puído e empoeirado, o qual deu uma sensa??o desagradável em suas solas. Por que quem quer que tenha a vestido n?o deixou um par de pantufas para serem usadas? Bom, talvez a pessoa que a trouxe para cá n?o estivesse t?o preocupada com seu bem-estar, sequer deixara água à disposi??o dela. Bom, irrelevante!

  Seguindo pelo corredor que parecia n?o ter fim, a mo?a se colocou a matutar sobre suas memórias mais recentes, mas estavam quase vazias. Talvez tivesse de se focar nos detalhes que poderia se lembrar: Irina estava numa carruagem de viagem para a cidade vizinha à Vila de Altevide, uma cidadezinha pequena que ela cresceu... Cresceu na casa do lorde de Altevide, Altevide é cercada por uma floresta, assim como todas as cidades na regi?o... A floresta nunca foi reduzida por conta de ser cheia de vegeta??o útil e animais de ca?a e... O que mais? Oh sim, a carruagem foi parada, abordada e... Nada.

  – Por quê alguém teria parado aquela carruagem? Só eu era passageira e nada de grande valor estava sendo transportado junto comigo.

  Irina ent?o passou à pensar nos gritos do cocheiro por misericórdia, pensou também que era fim de tarde, mas nenhuma dica do que poderia ter ocorrido veio à sua mente. Talvez o evento fosse t?o traumático que se esquecera, mas Irina sabe, nada é realmente esquecido totalmente, ent?o essas memórias voltar?o. Certo que voltar?o. Até lá, ela deveria se concentrar em achar uma saída e possivelmente uma arma para se defender.

  Nenhuma das janelas poderia ser aberta nem vista através, nem mesmo as do grande hall de entrada. Do alto do mezanino, Irina só conseguiu pensar como aquele lugar deveria ser belo pelas manh?s se as janelas que há muito foram seladas fossem vitrais coloridos, ainda mais que se expandia por mais de quatro pisos. As escadas estavam com parte da madeira roída, como se há muito tempo houvesse uma infesta??o de cupins que fora exterminada, mas o reparo nunca feito, deixando estilha?os e farpas contra as solas de Irina, contudo n?o houve resposta de dor. Pensando bem... Irina n?o sentia mais dor nenhuma. Nenhumazinha. Estaria ela perdendo seus sentidos? Medo se apossou de si mais do que antes, criando um arrepio em seus ossos que ela sequer sabia que poderia sentir e, se n?o fosse seu polegar inserido na argola do prato do casti?al, o objeto certamente teria caído de sua m?o e criado um incêndio. Irina passou à correr, pulando degraus em alguns casos, quase n?o se importando de cair da escada que continuava em jogos regulares de andar para andar. Felizmente foi apenas nos últimos degraus que um deles cedeu sob seu peso, a fazendo cair diretamente contra o carpete puído, diretamente atingindo sua testa primeiro.

  Irina preferia continuar sem sentir dores.

  Sua cabe?a latejou e sentiu sangue escorrer, assim como sentiu que seu rosto fora esfolado parcialmente no tecido sujo, suas narinas certamente já cheiraram latrinas com um cheiro menos desagradável. Agora eu morro de vez. Foi o que veio em sua mente. Se bem que o ato de ainda pensar significava que estava viva! Viva! E pelo visto sua experiência com objetos de valor n?o a deixara, uma vez que fora capaz de cair e manter seu bra?o esquerdo erguido, mantendo as chamas da vela longe de qualquer coisa inflamável, o que eram muitas naquele casar?o.

  Passos se fizeram presentes, apressados e até um pouco desesperados, descendo pelas escadas opostas às que Irina viera, a colocando no perfeito estado para come?ar à se erguer do solo, independente da dor em sua face e todo o resto de seu corpo, contudo a figura a alcan?ou mais cedo, imediatamente a segurando pelos bra?os para ajudá-la à se erguer.

  – Coitadinha, deve estar doendo bastante! – Uma voz suave, ligeiramente aguda e masculina que carregava um tom de preocupa??o falou, vindo diretamente de um rapaz jovem em roupas de viagem, cabelos loiros desbotados caindo em cachos pregui?osos caindo de um rabo de cavalo mal preso e fei??es delicadas. – Muito bem... Esta tua testa refeita deverá ser, contudo dano grave nenhum há de ocorrer, de certo.

  – N?o me toque! – Irina disse, debatendo-se um pouco, uma vez que seu pedido foi imediatamente atendido pelo jovem, o qual até segurou as m?os ao ar em sinal de que n?o a alcan?aria de novo. – Quem é você?! Onde estou? O que fizeram comigo? Diga logo!

  – Sou Ambrose, recordas-te n?o?

  Irina pausou naquele instante, finalmente observando o jovem com mais clareza. N?o, nada em particular, nem mesmo o par de olhos castanhos como mel envelhecido.

  – ... N?o conhe?o nenhum Ambrose.

  – Ent?o haverá de desculpar-me, ó jovem Irina, pois temo que culpa nenhuma além de minha é, uma vez que jovens h?o de cometer erros.

  – Quê?

  – Acalme-te, jovem Irina. Hei de explicar-me: n?o sou dotado de grande competência à impedir a partida de outrem, todavia encontrava-se em estado quase mortis e em meu desamparo juvenil, quis preservar tua gentil persona neste mundo, ainda que momentaneamente.

  Irina o observou, o deixou falar por raz?o de n?o ter uma possível melhor alternativa no momento. Que chances ela teria contra qualquer outra pessoa na situa??o que se encontrava?

  – Ambrose, n?o é? Você sabe meu nome. Como?

  – Perda parcial de memórias é um efeito temporário, jovem Irina. Acabará por recordar-se, porém adianto-a: o caixeiro viajante que visita Altevide aos sábados à noite, tu és minha cliente regular, comprando tecidos à tua falecida patroa, dama Rosalinda Silfrin, que Deus a tenha. Até mesmo após a morte de tua senhora, ainda visitava minha tenda.

  A mo?a finalmente relaxou o corpo parcialmente. Claro! Ambrose! N?o o reconhecera pelo seu estado pouco cuidado no momento, o lembrava como um homem de penteado impecável e vestes bem ajustadas, ent?o mal o reconheceu no escuro do casar?o.

  – ... Eu n?o sei se devo acreditar totalmente em você, mas eu estou sem op??es. Qu?o longe estamos de Altevide?

  – O suficiente.

  Irina arregalou seus olhos com a entrega direta e sem sequer acompanhada de explica??es extras, vinda sem hesitar ainda por cima.

  – O suficiente?

  – O suficiente para que desperte, Irina. Assim como eu, estás finalmente desperta.

Recommended Popular Novels