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23/09/1374 - Carta 15

  Antes que raiasse o Sol do dia seguinte, os ventos do Oeste guiaram o galope apressado de um mensageiro. Lemen já estava de pé e p?de receber o homem. Sem demora, Lemen tomou-lhe a carta das m?os e come?ou a ler. Lilian e os outros se levantaram do ch?o forrado e foram até os dois quando a conversa esquentou. Vendo a menina se aproximando, Lemen disse:

  “Isso vai depender dela.”

  “N?o, mas—”

  “Lilian...” Lemen cortou o mensageiro. “Onde está seu ursinho?”

  “Meu ursinho?”

  “é, aquele que você n?o consegue dormir sem.”

  “Eu n?o—”

  “Você n?o trouxe, n?o é? Esqueceu no orfanato… Poxa vida!”

  “Que pantomima é essa, soldado?” perguntou o mensageiro. “Acha que os superiores v?o aceitar uma desculpa t?o—”

  Lemen sacou uma adaga de sua cintura e a apoiou contra a garganta do homem.

  “Você prefere levar uma resposta no gogó ou por escrito?”

  O homem n?o se atreveu a dizer mais nada, sabiamente guardando suas palavras para quem gostaria de ouvi-las. Afinal, um mensageiro sem língua vale tanto quanto um sem cabe?a. E, assim, o batalh?o de Lemen tomou o rumo de volta para Dinaev.

  A destrui??o causada pela guerrilha — ou talvez massacre — do dia anterior havia sido quase reformada por completo. As pessoas já haviam se acostumado com o cai-levanta da guerra. Contudo, costume demais também pode ser um problema — do outro lado da cidade se escutavam bombas e morteiros, e ninguém estava deixando o trabalho de lado para se refugiar em casa.

  Os seis que voltavam para a cidade sabiam que as explos?es estavam acontecendo nas proximidades do orfanato de Lilian, e precisavam chegar lá o quanto antes. Para agilizar o processo, Sylon e Beta ficaram para trás guardando a carruagem enquanto Lemen e Lilian, Armio e Dario, cada dupla em um cavalo, partiram em um galope frenético.

  “Lilian, n?o sai da forma??o, ouviu? Por nada.”

  “Tudo bem…”

  “Faz tudo que eu mandar.”

  Conforme se aproximavam do objetivo, o número de pessoas na rua diminuía à medida que a quantidade de destro?os aumentava. Próximo ao lugar que hoje é conhecido como Pra?a das Dores, o grupo decidiu continuar a pé. Lemen guiava a expedi??o segurando Lilian pela m?o, dizendo quando andar e quando esperar. Parando em um beco protegido em todos os angulos, Lemen se abaixou e come?ou a desenhar no ch?o de terra com a empunhadura de sua adaga.

  “Armio, você pega as costas daquele prédio. Dario, você fica da beirada da pra?a até aqui. Eu vou correr até o orfanato. Vamos salvar aquelas crian?as.”

  “E eu?” perguntou Lilian.

  “Agora, você fica com o Dario.”

  “Mas…”

  “O seu trabalho é o mais importante. Quem vai garantir que todas as crian?as est?o aqui?”

  Com isso, Lemen partiu mais veloz que uma flecha até o orfanato. Cada segundo que passava era fonte de ansiedade para a garota, mas logo come?aram a sair crian?as e Irm?s em grupos pequenos. Lemen corria com os menores no colo até Armio e depois voltava para a próxima leva de órf?os. No último grupo, estava Madre Zeta com as novi?as, só que sem mais nenhuma crian?a de colo.

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  “Falta uma…” sussurrou.

  “O que foi?” perguntou Dario.

  Lilian correu o mais rápido que suas pequenas pernas permitiam. Dario tentou segurá-la no último instante, mas falhou. Armio estava ocupado com a organiza??o dos grupos para a segunda fase da evacua??o e n?o podia fazer nada por Lilian. Lemen, porém, foi correndo ao seu encontro e decidiu levá-la para dentro do orfanato.

  “Aqui n?o é mais seguro, Lilian. Temos que ir embora!”

  “Faltou uma menina…! Uma neném!”

  “N?o tem ninguém nos quartos… Se esconde ali embaixo, eu vou procurar no andar de cima.”

  Lilian, é claro, n?o se escondeu de forma alguma. Primeiro, foi até os quartos — embaixo das camas altas, dos len?óis, dos travesseiros — nada. De repente, a base do orfanato tremeu com um forte impacto.

  Em seguida, foi até a cozinha — embaixo da pia, dentro dos armários, atrás da despensa — também nada. Mais um impacto no orfanato, dessa vez mais forte. A integridade estrutural do segundo andar havia sido comprometida.

  Por fim, foi até o banheiro do primeiro andar, onde ficavam as mesas para troca de fraldas. Lá estava a crian?a, a recém-nascida que Lilian havia recebido na madrugada anterior. Quando viu a garota abrindo a porta, a neném abriu um sorrisinho banguela. Ela n?o chorava por motivo nenhum. Talvez por isso se esqueceram dela.

  Lemen pulou do andar de cima para a recep??o, ignorando as escadas. No mesmo instante, mais um morteiro acertou o segundo andar, dessa vez, destruindo todos os quartos por completo. Até mesmo a escada que levava ao terceiro andar, onde ficavam os sinos, havia sido destruída. O rapaz, incapaz de se levantar, se contorcia de dor.

  “Lilian!” disse Lemen. “Eu quebrei a perna! Você tem que sair sem mim!”

  N?o só a perna, mas certamente algumas costelas ou uma clavícula se partiram. A garota pegou a neném sorridente no colo e foi até a recep??o para ajudar Lemen, mas foi recebida com dureza.

  “Vai embora! Isso é uma ordem, recruta!”

  No orfanato, abafado pelos bombardeios sucessivos, ecoou um sonoro n?o. Lilian deixou a recém-nascida no ch?o e pegou a adaga de Lemen. Com cuidado e pressa, rasgou a cal?a na altura do joelho esquerdo.

  O osso da coxa estava quebrado, porém, por sorte, o trauma n?o era externo. Por outro lado, a regi?o onde ocorreu a fratura estava inchando a cada segundo, e a pele estava tomando uma colora??o roxa.

  “Você precisa fazer um corte… Para aliviar a press?o…”

  “Mas vai doer.”

  “Eu nem vou sentir…” riu. “Pode cortar fundo… Se for superficial, n?o adianta…”

  Lilian respirou fundo e fez o corte. Suas m?os tremiam, mas o gume afiado compensava qualquer falta de experiência. O sangue vermelho de Lemen escorria como a água era conduzida pelas telhas do orfanato em dias de chuva — e Lilian mordeu os próprios lábios.

  “O seu é muito bonito” disse, uma vez, Lilian a Irm? Cora. “Tem a cor das camélias.”

  “Obrigada. Mas o seu também é muito bonito” respondeu.

  “N?o é.”

  “é sim!” disse Madre Zeta. “De que serviria o azul do céu ou o vermelho das camélias se n?o fosse o amarelo do Sol?” E continuou: “Veja como eles se completam, em harmonia. N?o é lindo?”

  Aquele sangue nunca fez nada de bom por Lilian. Ele só trazia o mal, o medo. Era uma maldi??o que perdurava as gera??es. Causou a morte de seus pais e seria a causa da sua morte também.

  Lilian sabia que seu sangue tinha poder — foi o que sempre ouviu —, mas como acessá-lo? Em um ataque de panico, a garota apertou na m?o a lamina da adaga até que seu sangue come?asse a escorrer. Sua m?o doía, e n?o parou. Seus olhos lacrimejavam, e sua decis?o n?o se abalou.

  “Se eu pudesse perder todo esse sangue…”

  “Vem mais um…!” avisou Lemen.

  A garota só teve tempo de jogar a adaga para longe e agarrar a neném contra o peito. Lilian escutou um estrondo bem ao seu lado e fechou os olhos. Mais uma bomba havia atingido o orfanato, e a ela restava apenas a apreens?o do momento antes de ser atingida pelos concretos que inevitavelmente a soterrariam — mas tudo estava calmo.

  Lilian abriu os olhos e viu um mar de chamas ao seu redor — e conseguiu ver as costas do homem que as controlava e dividia. Atravessando as chamas, apareceu uma jovem. Vendo Lemen em sério risco de saúde, recitou um encantamento de cura enquanto enfaixava sua perna. Quando terminou, levantou-o e fez-se de apoio.

  “Consegue andar?” perguntou a jovem.

  “Consigo…” respondeu Lemen. “Você é…”

  “Que bom” disse Hjaava, segurando a m?o ensanguentada de Lilian. “Vamos embora.”

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