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23/09/1374 - Carta 17

  “Aqui em cima é frio” disse o homem. “N?o quer entrar?”

  Lilian sacudiu a cabe?a. Estava sentada na beirada do telhado da pousada, balan?ando os pés ao vento. O homem se sentou ao lado dela.

  “O seu nome é Lilian, n?o é? A Hjaava me falou de você. Por que n?o fica nos quartos com as outras crian?as?”

  “Eu estou sem sono.”

  “é mesmo? Já eu estou morrendo de sono. Só n?o consigo dormir.”

  “Por quê?”

  “Essas noites sem Lua… Elas s?o sempre muito escuras.”

  “Você tem medo?”

  “Um pouco. Todo mundo tem medo de alguma coisa. Quem diz que n?o, tem medo de admitir.”

  “Eu n?o tenho medo do escuro” disse Lilian. “Mas eu tenho medo dos espíritos maus. Porque eles n?o dormem de noite.”

  “Você consegue ver os espíritos?”

  “às vezes. Nos meus sonhos.”

  “Eu também consigo.”

  “E você n?o tem medo deles?”

  “Eu já tive, mas n?o mais. Quer saber por quê? Eu também consigo ver os espíritos bons. Tem um monte deles aqui, agora. E eles também n?o dormem de noite.”

  “Madre Zeta diz isso. Mas ela n?o consegue ver. Os espíritos bons s?o mais fortes?”

  “Muito mais. E um deles está com você desde antes de os seus pais te conhecerem.”

  Lilian continuava balan?ando as pernas ao vento, e inspirou fundo para sentir a noite.

  “Hjaava disse que as Princesas gostam de se sentir nas alturas. N?o é t?o legal assim.”

  “Ah, é? Eu gosto daqui. Dá para ver as luzes acesas nas casas, nos quartos. Os passarinhos ali. Consegue ver?”

  “Consigo.”

  “A vida continua de noite, mesmo quando as pessoas dormem. Aqui nem tanto, mas de onde eu venho… Nossa, eu via muitas luzes da janela do meu quarto.”

  “Muitas luzes?”

  “Muitas. Centenas!”

  “E n?o era perigoso?”

  “N?o, n?o…“ O homem mudou de assunto. “Mas, Lilian…”

  “Hum?”

  “Aquilo que você fez no orfanato… Você é muito corajosa, sabia? é uma heroína.”

  “N?o sou.”

  “Por que você acha isso?”

  “Tudo aconteceu por minha causa. A minha família quase morreu por minha causa.”

  “Lilian, você gosta de contos de fadas?”

  A pergunta pegou a garota de surpresa. Lilian ficou desconcertada tentando entender o que contos de fadas tinham a ver com o trauma que acabou de passar. E os ventos frios da noite somente pioravam a sensa??o que subia da sua barriga à garganta.

  Lilian tentou desligar-se do mundo. Fechada dentro de si, lembrou-se de como Madre Zeta fazia na hora de colocá-la na cama. De como ela gostava de ouvir histórias antes de dormir. E, mais tarde, como ela mesma passou a contar fábulas para os mais novos do orfanato…

  O homem se p?s a contar:

  “Era uma vez um grande reinado, com um grande castelo e uma grande corte. O rei, a rainha e os seus sete filhos tinham tudo em abundancia; e todas as noites faziam banquetes luxuosos convidando todos os servos do castelo. Como era o costume, a rainha dava o anúncio mais importante antes da comemora??o… E aquele dia era especial. Quando a rainha quebrou a sua ta?a, derramando o vinho nos panos brancos da mesa, todos comemoraram.

  Sete meses depois, nasceu a mais jovem princesa do reino. A pequena princesa era amada pelos pais e por todos os seus irm?os, nunca ficava nem um instante sozinha ou sem aten??o. Nem mesmo quando o reino passava por uma ou outra crise.

  Mas a princesa cresceu, e o rei come?ou a perceber pequenos detalhes. A cor dos olhos, a cor do cabelo… o jeito de andar e de falar. Aquela menina n?o é filha minha, ele pensava. Enquanto isso, as crises se acumulavam e o reino há muito tempo n?o prosperava. O rei, ent?o, decidiu: vamos mandar a praga para longe! Os irm?os da menina ficaram muito tristes, mas n?o podiam fazer nada porque tinham medo do pai. Todos eles se despediram, cada um com um presente.

  O primogênito entregou para ela um pequeno pingente com a insígnia real e disse: Assim como a pomba, você deve andar com o peito estufado.

  O segundo filho entregou para ela um anel de diamante e disse: Assim como o diamante, você deve brilhar mais que todas as joias.

  A filha mais velha entregou para ela um espelho ornamentado e disse: Assim como a prata, você deve ser a mais bela e preciosa.

  A segunda filha entregou para ela uma vela de cera e disse: Assim como o fogo, você n?o pode se deixar dominar.

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  O terceiro filho entregou para ela um travesseiro de penas e disse: Para quando você precisar descansar pelo caminho.

  A terceira filha entregou para ela um pote do mais doce mel e disse: Para quando você precisar recuperar a sua for?a.

  O último irm?o foi até ela, deu um forte abra?o e um beijo na bochecha, e n?o disse nada.

  A menina foi deixada na fronteira do reino, onde havia uma floresta de criaturas mágicas, para que ninguém a acompanhasse no exílio. Inspirando fundo, a menina deu seus últimos passos como princesa, até se perder no meio das árvores.

  Atrasada!

  Quem disse isso?, perguntou a menina.

  Aqui em cima!, respondeu a voz. Era uma pequena pomba cinzenta sentada no alto da árvore. Para ficar no nível dos olhos da menina, desceu alguns galhos e disse: Por que n?o está voando, pombinha?

  Mas eu n?o sou pombinha. Eu sou uma menina!, ela disse.

  A pomba tirou de baixo de sua asa um par de óculos e, colocando-os, percebeu sua gafe: Uma menina! Ora, que confus?o a minha! Mas o que a senhorita veio fazer aqui?

  Depois que a menina terminou de contar a sua história, a pomba ficou indignada: Peito estufado? Que audácia! Mas se a senhorita quer mesmo ser como uma pombinha… O mais importante s?o os olhos! Os olhos!

  A pomba entregou os seus óculos para a menina, e disse para ela fazer o mesmo com todos os outros animais que ela encontrar pela floresta. No fim, a pomba deveria ir embora para que ela mesma n?o se atrasasse. Após uma breve despedida, a menina voltou a andar.

  Cuidado!

  Quem disse isso?, perguntou a menina.

  Aqui embaixo!, respondeu a voz. Era um esquilo de pelos castanhos, que quase se camuflava na grama alta. Para ficar no nível dos olhos da menina, escalou o tronco da árvore e disse: Você quase pisou nas minhas nozes!

  A menina se desculpou e perguntou o que o esquilo fazia no meio do caminho com suas nozes. Ele respondeu: Com o que é meu, fa?o eu o que quero eu!

  Mas a resposta veio logo com uma tristeza: O que é meu n?o tem gosto, porque eu nasci de dentes tortos!

  A menina, ent?o, tirou a pedra de diamante do seu anel e entregou para o esquilo. O esquilo viu que a pedra era dura e tinha uma ponta aguda. Usando ela como ferramenta, ele seria capaz de abrir seus tesouros guardados. Mas ele perguntou: Por que está me dando isso?

  Com o que é meu, fa?o eu o que quero eu!, respondeu a menina. O esquilo ficou muito agradecido e prometeu dividir com os seus irm?os e amigos todas as nozes que encontrasse. O esquilo entregou para a menina uma de suas nozes antes de se despedirem.

  A floresta era cheia de sons maravilhosos. Pássaros cantando, insetos zunindo, animais roncando… Mas um guincho solu?ado chamou a aten??o da menina. Ela seguiu o som até a beira do lago, onde encontrou uma cisne branca cabisbaixa.

  Por que está chorando?, perguntou a menina.

  N?o consegue ver? Eu sou horrível!, respondeu ela.

  A menina ficou confusa e pediu para que a cisne explicasse mais a situa??o. Ent?o ela disse: Eu fui prometida em casamento, e o noivo está quase chegando! Ele é maravilhoso, mas olhe só o meu reflexo! Eu sou deformada e feia!

  A menina olhou para o lago e percebeu que a imagem que a cisne tinha de si mesma era completamente diferente de como ela realmente era. A menina pegou o seu espelho e o prendeu no ch?o à beira do lago. Quando a cisne se aproximou e viu que era semelhante ao seu t?o amado noivo, n?o podia esconder a sua felicidade. Como agradecimento, ela entregou para a menina um convite para o grande banquete que estava próximo.

  Voltando a caminhar pela floresta, a menina viu a noite se aproximando enquanto a tarde ia embora. O céu se avermelhou e come?ou a escurecer. Mas, de repente, vinham surgindo pequenas luzes, verdes, intermitentes, ora aqui, ora acolá.

  A menina parou de andar sem perceber, encantada com a sinfonia de cor que dan?ava pelo caminho. Ent?o, veio até ela um vaga-lume e perguntou: Ei, menina, cadê a sua luz?

  A menina, por um instante, ficou imaginando como seria ter asas e um bumbum brilhante… Mas logo que pegou sua vela de cera, disse que n?o sabia como acendê-la.

  O vaga-lume disse que aquilo era trabalho dele, porque só quem tem a luz pode dar dela aos outros. E advertiu a menina: Nunca esconda a sua luz dos outros, nem deixe ela se apagar. O seu fogo queima para servir, e, se n?o queima, de nada serve!

  A menina agradeceu ao vaga-lume pelo favor e disse que n?o se esqueceria daquelas palavras. Iluminando seu caminho com a vela recém-acesa, a menina teve que se despedir dos vaga-lumes, porque logo chegaria a noite.

  Os sons da noite eram melodiosos, calmos e quietos, numa sucess?o do que pareciam assovios e batuques. Mas um trote-tro-trote preocupou a menina, fazendo com que ela fosse investigar.

  Trote-tro-trote, e tap-tap andava a menina.

  Trote-tro-trote, tap-tap-tap.

  Já mais perto, a menina conseguiu ver o animal e ficou maravilhada. Era um pégaso, um cavalo alado. Ela perguntou: Por que está andando torto?

  O animal relinchou de susto, mas quando viu que a menina n?o queria mal a ele, contou o que o afligia: Eu estava voando muito baixo e me bati nas copas das árvores… Agora, as minhas asas est?o machucadas e eu n?o consigo voar!

  Ouvindo isso, a menina tirou as penas do seu travesseiro e viu que seria possível prendê-las nas asas do animal usando a cera quente da sua vela. O pégaso ficou com medo da ideia no come?o, mas logo decidiu aceitar a sugest?o da menina.

  Com as asas renovadas, ele viu que poderia al?ar voo novamente. Agradecendo à menina, prometeu que n?o voltaria a voar mais baixo do que era capaz, e se ofereceu para carregá-la até o outro lado da floresta. Ela quase aceitou, mas disse que preferia seguir pelo caminho da floresta sozinha. Uma despedida e, no próximo instante, o animal já estava céu acima. A menina voltou a caminhar.

  Ei, menina!

  Quem disse isso?, perguntou ela.

  Aqui dentro!, respondeu a voz. Era um urso pardo chamando a menina para a sua caverna. Mostrando as frutinhas que tinha coletado de manh?, disse: Corre por aí que uma menina está ajudando todos os animais da floresta! Se for você, eu te dou tudo isso!

  Vendo que já estava muito cansada da viagem, a menina resolveu aceitar a oferta. Assim que ela entrou na caverna, o urso disse: Eu também preciso de ajuda com uma coisa… E se você me ajudar, eu vou saber que você é a menina de quem tanto falam.

  A menina concordou, dizendo que faria o melhor que pudesse. O urso continuou: Todos os dias, eu como tudo que encontro pela floresta. A minha vida inteira eu fiz isso. Já nem sei mais se fa?o isso porque tenho fome ou se tenho fome porque fa?o isso!

  A menina pensou logo na solu??o do problema: Falta doce na sua vida!

  O urso n?o entendeu o que ela quis dizer, porque o que ele mais gostava de comer eram as frutas doces e o mel das abelhas. Bem devagar, a menina pegou o seu pote de mel, tirou a tampa... E virou na cabe?a do urso!

  Enquanto o mel escorria e melava o urso inteiro, a menina ria de orelha a orelha: O doce que falta é você!

  Naquele momento, o urso entendeu a fraude da sua vida de predador e, como prometido, deu as frutinhas que coletou para a menina. Depois de passar a noite aconchegada, veio a luz do Sol invadir a caverna. A menina se despediu do urso de manh? cedo, e voltou ao seu caminho.

  Olhando para a sua vela, já no fim do pavio, a menina percebeu que n?o duraria até o fim do dia. Mas, lembrando do que disse o vaga-lume, ela n?o poderia deixar que se apagasse. Enquanto imaginava o que poderia fazer, a menina acabou ouvindo conversas e risadas de uma parte afastada do caminho.

  Atrás das árvores, havia uma clareira, e nela um pequeno acampamento. Dois homens de farda estavam bebendo e se divertindo, até que perceberam a menina chegar. Eles pareciam bem educados e se ofereceram para levar a menina até um lugar seguro, longe da floresta. Mas por um pre?o.

  Essa é a parte mais triste da história, mas é a que eu mais gosto, Lilian…

  Lilian?”

  A garota estava dormindo.

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