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O TRAUMA

  Um anjo que ataca o outro, desejando preencher uma falta, uma necessidade sem sentido de dominar e sujeitar um outro anjo... Como isso seria incompreensível, se n?o soubéssemos das experiências que se buscamos.

  Enquanto ela se distraia na receita e na confec??o da pizza, eu me distraia na limpeza das vasilhas. Meus pensamentos escorreram para longe, rememorando o que havia acontecido com minha amiga, e como eu devia ser grato por poder ajudá-la a superar tudo o que passara. Ela iria conseguir, nós iriamos conseguir, eu tinha certeza.

  Engra?ado como pensamos muito em poucos segundos.

  Sempre que havia alguma coisa relacionada ao ato sexual a Ema simplesmente travava. Era assim com ela desde os ataques que ela sofrera:

  Tudo come?ou quando um louco surgira na cidade, rememorei. Ema ainda era uma crian?a naqueles dias, contando apenas 13 anos de idade. Ninguém deu aten??o a ele. Ao contrário, muitos moradores, condoídos por ele, o ajudaram, dando-lhe roupas e comida.

  Ele era um sujeito alto e muito forte, de m?os grandes e olhar assustado, a voz baixa e receosa.

  Mas ele era um louco, e tinha uma pervers?o.

  Ema quase foi estuprada por esse mesmo louco que todos tentavam ajudar.

  Era já o início da noite. Margarida olhou pela janela, e a Ema estava perto do port?o da casa, brincando com um gato.

  De repente ela n?o estava mais lá. A m?e saiu e ficou chamando-a, estranhando o silêncio em que tudo estava mergulhado. Foi quando o pai chegou, e Margarida contou que n?o conseguia encontrar a Ema. Tomado de preocupa??o, enquanto a m?e procurava ao redor da casa, o pai andou para o final da rua. Foi a sorte. Raul notou algo estranho em uma esquina escura, nos sons de movimentos agressivos e brutos. Ele se aproximou apressado, para ver o que estava acontecendo. E ele viu um homem, que segurava uma menina pela garganta, enquanto com a outra m?o come?ava a baixar as cal?as.

  Depressa ele tomou a dire??o do casal, pronto a intervir.

  O louco virou o rosto, e o encarou, o ódio escorrendo por ter sido interrompido.

  Ele parou, horrorizado quando viu quem era a menina. Seu cora??o pareceu explodir ao ver que a menina era a Ema.

  Sem pensar mais, apenas correu contra o homem louco.

  O pai e ele lutaram violentamente. O cara acabou fugindo. Vizinhos ouviram a confus?o e chamaram a polícia, que acorreu rápido. O pai estava muito, muito ferido, e teve que ser levado para o hospital, tal como ela, que estava em estado de choque.

  Mas, parecia que o destino a queria for?ar ainda mais.

  Aos quatorze anos foi atacada sexualmente por um vizinho. Ela reagiu ent?o, quebrando um tijolo na cabe?a dele. O sujeito foi preso, mas um trauma a mais se instalara nela.

  Revoltado com o que havia acontecido com ela, sugeri que nós entrássemos para alguma academia de artes marciais, o que foi muito bem aceito por todos. A Ema escolheu Karatê, e eu escolhi o aikid?, que depois de um tempo acrescentei com a academia de kung fu. Até hoje agrade?o demais por termos tomado essa decis?o.

  E isso porque tudo piorou em pouco tempo.

  Faltava um mês para ela fazer quinze anos quando o pior aconteceu. Ela estava em um show com amigas, e o show já terminará. Renata, uma velha amiga, quis ir embora. A Ema pediu para que ficassem mais um pouco. A amiga riu e disse que estava tranquilo, que ela iria na frente. Como as duas eram vizinhas, a Ema disse que logo a alcan?aria. N?o demorou e logo a Ema se despediu das amigas e tomou o caminho de casa. Ela passou perto de um bar e, um pouco mais à frente, notou gemidos e urros de prazer em uma esquina mal iluminada. Quando ela se aproximou ficou em choque com o que via: sua amiga estava sendo atacada por três sujeitos. Eles riam baixinho, batiam nela enquanto um deles a estuprava, numa selvageria louca.

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  - Agora sou eu – gritou um outro empurrando o que abusava da Renata.

  - N?o, é minha vez. Você já foi umas duas vezes...

  Foi ent?o que os três, com as cal?as arriadas, perceberam uma presen?a na entrada do beco.

  Ema, se a princípio ficará congelada com a vis?o, logo se recuperou. Gritando de ódio se lan?ou contra eles. Eles riram e ficaram felizes, acreditando que teriam mais uma com que se divertir. Mas Ema se mostrou mais louca que eles. Ela conseguiu derrubar dois deles, mas o terceiro, o mais forte e alucinado deles, tirou uma faca de cozinha da cintura e, num descuido de Ema, a esfaqueou no ventre, puxando com violência a faca para baixo. A faca estava muito afiada, apesar de suja e velha. O corte foi horrível, atingindo o útero em cheio. Quando desceu em um círculo quase atingiu a femoral esquerda, e quando saiu, rasgou parte da vagina de Ema.

  A sorte foi que, com o alarido e a balbúrdia que o beco se encheu, passantes e pessoas do bar acorreram. Os homens foram pegos e quase linchados pela popula??o, enquanto uma ambulancia acelerava para o hospital, com as duas. Mas, enquanto as pessoas se preocupavam com as duas, os três conseguiram fugir do local. Na noite do dia seguinte eles foram pegos, mas o mal que haviam cometido n?o podia mais ser revertido.

  Do estupro da nossa amiga resultou uma gravidez indesejada, que ela se recusou a abortar, no que foi apoiada pelos pais. Mas a dor estava lá, e eles acabaram resolvendo se mudar para o estado do Rio Grande do Sul.

  E quanto à Ema, ela teve que enfrentar várias cirurgias. Felizmente, fisicamente tudo foi resolvido, mas só fisicamente. Apenas ficara uma cicatriz, que quase n?o se percebia.

  Meu cora??o estava pesado demais. Silencioso de dor n?o saí de perto das duas, e depois ao lado de Ema, quando nossa amiga teve alta. Eu n?o desgrudava dela. Eu estava lá quando a trouxeram da UTI; eu estava lá quando tomava seus remédios, quando chorava, quando precisava de uma m?o para apertar. Eu era a voz que lia para ela, e que procurava lhe dar for?as. Eu ajudava os pais na troca de seus curativos, em sua alimenta??o, e velava seu sono.

  Me lembro quando ela acordou, após vir da UTI. Ela abriu os olhos pesados, perguntando sobre a amiga. Eu contei a ela, dizendo que ela se recuperava e já tivera alta e estava em casa com seus pais. Ela sorriu. Ent?o seu rosto ficou duro.

  - E quanto aos bandidos? – perguntou, a voz entrecortada dos remédios.

  - A polícia conseguiu pegá-los, Ema – contei, sob os olhos tristes dos pais, que estavam conosco naquele momento.

  - Que bom, que bom... Gostaria que morressem – falou, uma lágrima correndo de seus olhos.

  Eu inspirei lentamente, sabendo que a dor que sentia no corpo e na alma haviam lhe ditado o que dissera, pois sabia que n?o era isso realmente o que desejava.

  - Sabe quem aju...

  Eu segurei o bra?o da Margarida, e ela entendeu que a Ema n?o precisava daquela informa??o, nem agora nem nunca.

  Ela riu, a informa??o se perdendo quando Ema adormeceu.

  Os dias passaram, enquanto ela se recuperava lentamente. Ent?o chegou o dia em que teve alta e retomou o fio da vida. N?o demorou e logo ela estava totalmente recuperada, sem qualquer sequela física.

  Mas, por mais que nós todos tentássemos, e buscássemos ajuda, os traumas nunca se foram. Em ambos os casos mais graves, ela se abriu comigo um dia, ela se sentia culpada. Ela se sentia culpada de que seu pai, que tanto amava, quase fora morto por culpa dela, e que também fora por causa dela que sua amiga fora atacada.

  A dor era grande, o que e a impedia de ouvir qualquer argumento, por mais forte que fosse.

  Ela n?o conseguiu lidar com essas culpas e dores muito bem. Mesmo as sess?es com psicólogos pouco resolveram a culpa e os medos que ela embalava.

  Por causa disso ela desenvolveu o receio de namorar ou ficar, ou mesmo de dar uns malhinhos, pois dizia que os homens sempre iriam querer ir algo mais além, e que se tornavam animais, por mais carinhosos e bonzinhos que aparentassem ser.

  Quando ela disse que aceitaria montar uma república comigo, eu bem sabia que os pais ficaram aliviados. Afinal, eu era o melhor, e talvez único amigo que ela tinha, e sabiam que comigo ela estaria totalmente protegida.

  E eu sabia os riscos, para nós dois. Mas, o respeito que tínhamos um pelo outro, e o cuidado que tínhamos nos protegia. Eu sabia que havia dias em que ela estaria mais acessível, e dias em que qualquer aproxima??o minha poderia disparar uma resposta ruim. Eu sempre ficava avaliando seu estado, cuidando dela.

  Eu adorava cuidar dela.

  Quando eu via triste, ou extremamente reativa, eu conseguia rapidamente trazê-la de volta, porque ela sabia o quanto eu a respeitava e o imenso carinho que tinha por ela.

  Suspirei pesado, e sorri ao ouvir sua voz alegre me chamando à realidade.

  - O bolo e o café v?o esfriar, seu distraído – ela falou toda cheia de energias, sentando-se ao meu lado e cheirando deliciada o aroma do bolo.

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