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LAYLA -Hora primeira após a queda

  Só agora percebi que atrás dos olhos se esconde a alma, de onde fica tentando entender o que é para a vida que construiu.

  O corpo, agora, sentira mais nitidamente a queda. As dores estavam mais espalhadas. Ainda deitado no ch?o da cratera aberta maldisse a dêmona, que o impedira de ter um mínimo de descanso antes de tentar novamente.

  Dessa vez, assim que surgira ante os anjos que defendiam a entrada do céu, foi logo atacado e n?o resistiu, sendo atirado com brutalidade de volta para a terra.

  - Ah, se essa floresta for a mesma que aquela dêmona acha que é dela, acho que agora n?o vou deixar barato.

  Inspirou mais forte, enquanto curava o dedo quebrado do pé.

  > Você ouviu, dêmona? N?o vou deixar barato dessa vez – gritou para o círculo da noite estrelada.

  Percebendo que tudo estava em silêncio, num impulso saltou para a borda da cratera, observando com cuidado ao redor. Devagar estendeu sua aten??o, n?o desejando ser surpreendido novamente. Mas, nada havia, por quil?metros à volta.

  - Ah, deve ser uma outra floresta – cismou elevando os bra?os e se espregui?ando com vontade.

  Ainda pensativo desfraldou as asas e se elevou suave acima das árvores.

  N?o muito distante ao sul viu, ainda dentro da noite que principiava a morrer, alguns montes suaves cobertos de capim, e decidiu que lá seria um bom lugar para descansar e assistir a mais um grande expurgo.

  Devagar, porque suas for?as ainda n?o estavam recompostas, pousou. Ao tocar no ch?o sentiu que seu corpo todo doía, quando lhe p?s todo o peso.

  Como se fosse um filme, em que podia manter suas emo??es em separado, olhou à volta. Indiferente, viu mais dos seus irm?os caindo do céu, incendiando-se em dire??o à terra.

  Ent?o a viu à distancia, observando com enlevo o céu em fogo.

  Gadhiel reconheceu-a como uma Dêmona, que já vira algumas vezes antes, olhando triste e abandonada para o céu. De vez em quando a via por ali, sempre sozinha, cismando, os olhos no céu. Essa era diferente daquela que o atacara na floresta. Essa era uma dêmona da superfície, seres com emo??es um pouco mais polidas, sendo que alguns desses dem?nios da superfície podiam, até mesmo, serem confundidos com anjos, sendo apenas os corpos o que os diferenciava.

  Satisfeito com o exame voltou novamente os olhos para os irm?os que caiam, procurando algum sinal de sua família, que há muito perdera. Sorriu triste, ao confirmar que eles n?o estavam ali.

  Encheu o peito e, se poderando em fúria controlada, subiu ao céu, tentando toma-lo, novamente, de assalto.

  Vozes e sons, e pancadas, muitas, por todo o seu corpo. N?o suportando mais n?o teve como n?o se abandonar, e mais uma vez se viu em queda na dire??o do planeta que achava estranho, apesar de tantos e tantos séculos, chamar de lar.

  - Ai... – gemeu. - Essa queda, realmente, acho que foi a que mais doeu – reconheceu para o círculo de estrelas que via do buraco.

  Assim que tentou se levantar sentiu uma pontada violenta em seu lado, e viu que algo estava quebrado. Fechou os olhos e se inundou de paz.

  Tentou se mover mais uma vez.

  Mas seu ser estava corroído de mágoa e revolta, e muita dor, e só com muito custo conseguiu concentra??o suficiente para se curar.

  Ent?o se assustou, ao ver na borda da cratera que surgira quando tocara a terra, a cara da dêmona da superfície, que gostava de matar o tempo vendo as quedas dos anjos.

  Ela era toda negra, sua pele parecendo envolta em fuligem, que ficava se revolvendo com suavidade à sua volta. Ela parecia ser bem alta, ao menos era esguia, o rosto suave, bonito até mesmo se fosse uma demiana – as linhas eram suaves e algo gentis. Os olhos eram de um vermelho profundo e límpido, o que estranhou, visto que, normalmente, o comum é que fossem vermelhos e meio emba?ados.

  E ela se mostrava curiosa.

  Devagar se levantou, a cabe?a no nível da borda da cratera. A dêmona se afastou um pouco, continuando a observá-lo, curiosa.

  - O que olha, dem?nio? N?o possuo medo com que possa se alimentar.

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  - Mas possui revolta e dor.

  Gadhiel sentiu um arrepio ao ouvir aquela voz. Era como um som de um vento vindo das profundezas de uma caverna antiga e mofada. E havia uma certa no??o de fome naquela voz.

  - De qual assembleia você é?

  - N?o sou de nenhuma assembleia – revelou.

  - Ora, uma dêmona em desgra?a – sorriu sarcástico.

  - Tal como você, vigilante.

  - Ent?o, se eu a matar agora, n?o atingirei nenhuma assembleia – cismou.

  - Estava pensando o mesmo quanto a você – ela disse.

  – Ent?o, se você n?o tem assembleia – ele continuou, n?o dando importancia ao que ela disse ter lhe passado pela cabe?a, - assim, você n?o tem qualquer importancia para mim. Ent?o, por que n?o se vai embora? – sugeriu, abrindo as asas, com as quais saltou para fora da cratera.

  - N?o, ainda n?o. Talvez depois – falou, parecendo ainda estar imersa em profundos pensamentos, observando-o sem muito interesse.

  - O que está aguardando?

  - Pensando... Você é fraco. Precisou das asas para sair desse buraco.

  - Ah, isso? Claro que n?o preciso delas – falou fechando as asas. – Foi só para te impressionar – confessou com um sorriso moleque na cara. Ent?o saltou novamente para dentro da cratera, e, sem as asas, voltou para fora dela. – Viu só? N?o preciso delas para um buraquinho desses – sorriu confiante.

  - Sei...Mesmo assim, preciso me decidir – falou, mantendo um olhar avaliador nele.

  - Se decidir a que?

  - Estou tentando ver se terei algum ganho se eu te matar. Um anjo é uma coisa, mas um vigilante desprezível, sem pertencimento a qualquer família, é como uma inutilidade. N?o serve para muita coisa.

  - Ent?o parece que nós dois n?o temos validade um para o outro. Por causa disso vou falar de novo: se vá! Se n?o sua utilidade vai se mostrar.

  - E qual seria ela?

  - Ora, a de eu conseguir uma paz provisória... – sorriu voltando sua aten??o para o alto, conferindo que muitas estrelas já tinham desaparecido num céu que já n?o se mostrava t?o negro.

  Se deixou perdido no céu, ouvindo os apitos e trombetas, tal como a dêmona, que estava absorta, também tendo os olhos voltados para o céu.

  Com a mente perdida no céu viu uma pedra larga no monte, sobre a qual se sentou, distraído, curtindo a vis?o.

  - Sua casa era bonita? – ela perguntou se sentando ao seu lado, pegando o anjo de surpresa.

  - Muito... E a sua?

  - Acho que n?o. Eu n?o gostava de lá.

  - Muito vermelha?

  - N?o, até que n?o. A vis?o que vocês têm da minha casa n?o é muito certa. Eu n?o estava sob a terra, mas nas sombras das florestas, nas sombras das montanhas.

  - Tinha certeza de que era uma dêmona de superfície – falou como se fosse uma vitória. – Você deve ser uma guerreira muito valente e capaz. Afinal, você é ca?ada por anjos e dem?nios do interior da terra, e pelos entes da natureza.

  - Sou boa no que fa?o – respondeu com simplicidade, o que obrigou o anjo a observá-la com mais cuidado.

  Gadhiel notou um ar de tristeza naquela voz, o que o intrigou.

  - O que aconteceu com sua assembleia?

  - Todos mortos...

  - Entendo. E por quem eles foram mortos?

  - Por todos os que você nominou – respondeu, os olhos seguindo uma coluna de fogo que rugia céu abaixo.

  - Meu nome é Gadhiel – ele disse com simplicidade, os olhos também seguindo, intrigado, o mergulho da coluna de fogo. - Essa coluna deve ser um grupo. Possivelmente uma família – apontou, a voz parecendo distante.

  - Também acho... Muito grossa...

  - é , isso mesmo...

  - Sem dúvida... Mas, me diga, o que seu nome quer dizer?

  - Como? – perguntou, sem tirar os olhos do céu e postando no rosto que achou bem mais bonito que da primeira vez.

  - Sei que gostam de se dar nomes com significados.

  - Ah, esse n?o é o meu nome de origem. O de origem é meio...

  - Feio, chato?

  - N?o, n?o isso! N?o conseguiria te fazer entender... Ent?o, me deram esse nome, Gadhiel, quando cai pela primeira vez...

  - Pela primeira vez? – assombrou-se a dêmona, mostrando surpresa, tirando por alguns segundos os olhos do céu. – Quantas vezes já caiu?

  - Desde quando? – perguntou absorto.

  - Ora, desde o início, desde a primeira queda.

  - Ah,... – ele ficou em silêncio, parecendo contar. - Acho que umas mil vezes – informou.

  - Uauuu... Ent?o seu nome...

  - Vem de mergulhador. Quando eles me derrubam eu espero me recuperar e ficar forte de novo, e tento voltar para casa. Eles me pegam, batem um pouco e me jogam de volta. Acho que isto está virando uma divers?o...

  - Mergulhador? N?o, n?o é mergulhador. Eu sei o que quer dizer.

  - Ora, ent?o por que perguntou? – a olhou intrigado.

  - Porque achei, e tinha raz?o, de que você n?o sabia...

  - Eu já te contei – falou teimoso.

  - Mas está errado. Gadhiel quer dizer “o senhor é meu juiz”... – explicou com ar divertido no rosto.

  Gadhiel ficou em silêncio por um momento, avaliando o que ficara sabendo.

  - Sério isso?

  - é sim. é isso o que seu nome quer dizer.

  Ora, eu pensei. Eles s?o bem sacanas mesmo. Ent?o tá, né? O senhor é meu juiz também é bom...

  - Vejo que desde cedo eles est?o se divertindo em te torturar, n?o é mesmo?

  - O nome n?o me torturou...

  - N?o falei do nome. Isso foi apenas uma pe?a. Falo de ficar te jogando do céu...

  - N?o,... claro que n?o é tortura. é como se fosse uma brincadeira, para eles e para mim.

  - Sei... – falou com descren?a na voz. - E o que acontece se você conseguir passar por eles?

  - Nunca vou conseguir passar – confessou, a voz um pouquinho pesada e abatida. – O céu está separado de mim.

  - E quem te separou dele?

  - Eu mesmo. A minha vibra??o está diferente...

  - Ent?o por que tenta?

  - N?o sei, na verdade.

  - Você deveria estar como eles. Esses que est?o caindo agora, vê? Eles ficam um pouco dentro dos buracos, e depois, conformados, saem pelo mundo. Soube de muitos deles que se tornam dem?nios, ou guerreiros que ficam procurando a morte, sabe? Para ficar morrendo e nascendo de novo, sempre voltando, tal como você, mergulhador, mas sem nunca mais pensar em voltar para o céu.

  - Eu n?o morri, desde que caí – revelou. – E também n?o quero para mim isto de ficar morrendo.

  - Ah, entendi. Você ficar assim, tentando, para sempre. é alguma puni??o? De toda forma, n?o deixa de ser uma forma de adormecer, n?o é mesmo?

  - é, acho que é isso mesmo. E, qual o seu nome?

  - Layla...

  - Tem algum significado? – perguntou vendo que ela ficara em silêncio depois que dissera seu nome, os olhos voltando a se perder nas estrelas de fogo que caiam.

  - N?o, é só isso mesmo: Layla.

  De repente os dois perceberam quando o ar pareceu ficar mais escuro, mais pesado.

  E ela bem sabia o que isso anunciava.

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