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DAMNATIO AD BESTIAS

  E se pudéssemos contar com o amor dos nossos outros eus?

  Estávamos todas ali, encolhidas, envergonhadas. Estávamos nuas, e haviam lambuzado nossas partes baixas com o cheiro de vacas e éguas, e muitas de nós tínhamos as almas destro?adas, os olhos esgazeados e amortecidos. Os nossos algozes riam e zombavam de nós.

  Já n?o bastava terem nos estuprado por dias seguidos, n?o se davam por satisfeitos com nossas dores. Eles queriam destruir nossas almas.

  - S?o bestas de carga? – gemeu a menina ao meu lado.

  - N?o pense sobre isso, menina – eu disse, séria, me esfor?ando em parecer indiferente. – Deixe sua mente livre do que está acontecendo, deixe ela livre de seu corpo. N?o importa se será burro ou touro ou qualquer outro animal. Reze para ser o mais monstruoso deles, porque acabará rápido.

  - N?o, nós precisamos do sofrimento – gritou uma outra com os olhos vidrados. – Quanto mais dor e mais sofrimento, maior será nossa penitência. Nosso deus merece isso.

  A pata da frente rasgou parte do meu rosto, e a dor foi violenta demais. Eu estava nua, como muitas outras, amarradas no meio do coliseum. Haviam passado o cheiro da vaca em nossas vaginas, e os touros estavam enlouquecidos. Senti o pênis imenso dele entrando em mim, me rasgando e despeda?ando meus órg?os, e tudo em meio aos gritos eufóricos das multid?es. Eu ouvi um grito de horror de profundo desespero de um crist?o que estava ao meu lado quando o touro tomou sua dire??o, enquanto uma outra gritava louvores, no momento em que o touro a rasgava.

  E a multid?o gritava histérica “damnatio ad bestias”, como que enlouquecidas de prazer bestial.

  Apenas sei que senti um grande alívio quando morri, quando deixei meu corpo sobre aquele triste ch?o.

  Me virei e me fui, deixando tudo para trás, entrando por aquela paisagem triste.

  Mas, ent?o, me lembrei das outras e voltei. Algumas já se tinham ido embora, mas outras estavam ali, paradas, confusas, observando seus corpos ainda sendo despeda?ados pelos animais, presas na hedionda vis?o.

  Uma a uma tomava pelo bra?o e tirava de lá, tentando n?o olhar toda aquela vis?o de dor.

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  Fiquei esperando quando a última delas sucumbiu e sua alma escapou do corpo arruinado.

  A tomei num longo abra?o e a levei embora.

  Ficamos todas nós em um lugar, parecido com uma campina cinza sob um céu nublado. Tudo estava triste, e o céu era riscado vez ou outra por um relampago vermelho e silencioso.

  Estávamos todas nós nuas com os corpos machucados e ensanguentados. Solu?amos de dor, perdidas naquele mundo estranho.

  - Erramos tanto assim, para estarmos aqui neste lugar? é o purgatório? – ouvi um lamento de uma das meninas.

  - N?o, minha querida – eu gemi sentida, passando os olhos tristes por aquela paisagem ainda mais triste e pesarosa. – é apenas a nossa dor que nos mostra isso – falei esperan?osa de que aquilo fosse verdade.

  Ent?o, subitamente, uma luz furou as nuvens e as foi dissipando com suavidade, deixando o sol entrar e transformar aquela terra infeliz em verdes campos, repleta de árvores, vida e felicidade.

  E, dentro da luz que vinha ao nosso encontro, vimos as formas de um ser. Ele parecia estar vestido de vestes longas e brancas. Ele era todo luz, e sentimos um amor intenso descer sobre nós.

  Tomadas de emo??o, crentes de que era o nosso salvador, caímos de joelhos e mantivemos nossas cabe?as vergadas para o ch?o, envergonhados pelo que tínhamos passado e pelas fraquezas que havíamos demonstrado, em mudo pedido de desculpas.

  Ao senti-lo se aproximando minha vergonha cresceu, tentando tapara minha nudez arruinada.

  As outras devem ter sentido o mesmo que eu.

  Por uma brisa suave e morna me vi cercada, e logo senti panos diáfanos recobrindo o meu corpo, agora totalmente recomposto.

  - Levantem-se, minhas queridas crian?as. Tenho muito orgulho e felicidade por vocês. Ah, n?o sabem como amo cada uma de vocês...

  Lentamente fomos levantando a cabe?a, e vimos que realmente era ele. N?o havia sangue, chagas ou coroa de espinhos, mas apenas... Havia apenas amor naqueles olhos, naquele sorriso e naquela luz.

  Sem poder me conter, tal como as outras, nem mesmo passando pelas nossas cabe?as se deveríamos, nos levantamos apressadas e corremos para ele, e o abra?amos, felizes e em paz, como quando se sabe que retornamos para casa.

  E que abra?o era aquele... Ent?o percebemos que éramos nós todas, e ele, num longo e afetuoso abra?o, repleto de tudo de bom.

  Nos deixamos esquecidas ali, daquele jeito. O tempo eu n?o sei, mas foi muito curto.

  - Que tal irmos para casa? – ouvimos a voz suave e maravilhosa.

  Saímos do abra?o e demos com toda aquela gentileza. Nossos cora??es cresceram, e tudo o que havíamos passado se foi, perdendo de vez qualquer importancia de dor ou puni??o. Estávamos livres, eu senti.

  Súbito, muitas luzes foram surgindo no céu, descendo em dire??o à nós.

  Sorrimos agradecidas quando muitos seres vestidos de branco se mostraram na luz, descendo ao lado de cada uma de nós. Ent?o, com um tocante carinho, nos levantava e nos levava embora.

  Eu sorri agradecida para o ser que desceu à minha frente. Eu n?o sabia como nem de onde, mas eu tinha certeza absoluta de que o conhecia. Eu o abracei forte e por longo tempo e chorei, por alívio, por saber que o mal agora estaria longe de mim.

  N?o me dei conta, mas quando me separei dele, estávamos em outro local. Era como um hospital, cheio de camas de len?óis brancos, e tudo banhado por uma luz radiante.

  - Descanse, minha filha. Você precisa, você merece. Você lutou o bom combate, minha querida. Tudo está bem agora, como sempre esteve. Tudo está bem... – repetiu, enquanto o sono suave e feliz me envolvia.

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