home

search

QUEDAS E PEDRAS

  E se você se lembrasse que é um com todos...

  Minha irm? e seu namorado continuaram a subir pelas pedras expostas da cachoeira, que era um ponto turístico da cidade.

  O tempo estava muito bom.

  Eles seguiam acima, rindo e brincando, conversando animados.

  A água marulhava eufórica do meu lado direito. Eu fiquei para trás, recordando aquele lugar, onde a minha infancia havia se esticado com profundo prazer.

  Assim distraído, de repente senti que algo me puxava para um canto, onde o leito de rochas se abria mais para a esquerda. Percebi, com um profundo desgosto, que estavam fazendo extra??o de granito ali. Havia um rasgo no leito de pedras. Algo chamou a minha aten??o; n?o me lembro bem. Provável que fosse curiosidade, para ver a profundidade do dano que causavam. Ent?o subi numa pedra que parecia uma colher num declive suave em dire??o ao local mais abaixo. Sem me aperceber do perigo, visto que havia musgo amarronzado sobre a pedra, pus o outro pé, alinhado ao anterior.

  Totalmente surpreso comecei a escorregar bem devagar em dire??o ao buraco, que foi se descortinando lentamente para mim. Bem vagarosamente fui vendo o fundo daquele rasgo nas pedras, e vi que ele devia estar a uns três ou quatro metros abaixo do lugar onde eu estava, e para o qual eu deslizava lenta e inexoravelmente.

  Ainda ouvia ao longe a alegre conversa dos dois, mas até mesmo falar e gritar por socorro me deixaram receoso de causar um aumento da minha velocidade para baixo.

  Com preocupa??o e receio ia me dando conta de que ele estava repleto de pedras forrando o ch?o, todas de bordas irregulares e cortantes, algumas até mesmo pontiagudas. Observando o fundo eu deveria ter ficado apavorado, mas uma calma enorme estava em mim, e eu avaliava com tranquilidade alternativas para escapar de cair entre aquelas pedras de bordas cortantes. No pared?o do outro lado daquela abertura criada, que devia estar a uns dois metros e meio de mim, havia, à meia altura entre o fundo e o topo, uma pequena e estreita plataforma comprida. Ela devia ter um metro e meio de comprimento por uns trinta centímetros de largura projetada da face da pedreira. Rapidamente me vi saltando para ela, pensando e pesando cada movimento que eu teria que executar para ficar sobre ela, escapando de cair no perigoso ch?o. Mais que depressa eu vi que n?o havia qualquer outra forma de escapar, e que aquela era minha única possibilidade.

  Ent?o me preparei, marcando o tempo quando meus pés tocariam a borda da pedra sobre a qual eu escorregava.

  Assim que meu ded?o tocasse na borda, e antes que eu perdesse qualquer possibilidade de usar os músculos da perna para saltar, eu teria que me lan?ar para aquela pequena plataforma. Examinei a outra face novamente enquanto continuava a escorregar com suavidade, e conferi que n?o havia nenhum lugar onde eu pudesse me agarrar com as m?os. Examinando a pequena plataforma avaliei que se pulasse de frente para o pared?o, fatalmente meus joelhos iriam se flexionar e bateriam com violência contra a parede, o que me lan?aria fatalmente de costas contra as pedras cortadas. Ent?o, eu teria que tentar fazer com que minhas pernas atingissem a plataforma ao mesmo tempo, e um pouco de lado, de tal forma que os joelhos n?o me atirassem para baixo.

  - Mais um pouco – sussurrei para mim, ainda sentindo a pedra deslizando gentilmente sob meus pés.

  > Mais um pouco – sussurrei outra vez, percebendo, por baixo do olho, que meu ded?o já estava para chegar à borda.

  > Só mais um pouquinho. Mais... Mais... Quase lá...

  Estávamos sobre o alto de uma colina, os montes verdejantes se espraiando como ondas leves no mar. Minha pequena cidade estava lá embaixo, aninhada no vale. O rapaz que estava ao meu lado, que de alguma forma eu sabia ser um velho e querido anjo da guarda, examinava a cidade com um cativante interesse, como se estivesse vendo particularidades que eu n?o via.

  - Esse foi um outro momento em que você morreu – meu guardi?o me confidenciou, como se fosse algo normal. - Você caiu de costas. Sua coluna foi partida, e uma ponta de pedra penetrou na base do seu craneo. Você n?o tinha chance contra aquele lugar.

  - Puxa! Morri mesmo lá?

  - Sim. O que quer fazer?

  - Ainda n?o sei! Já acharam o meu corpo?

  Unauthorized use of content: if you find this story on Amazon, report the violation.

  - Ah, sim... Está uma loucura por lá. Você virou celebridade. Tem muita dor em sua família e conhecidos, e em algumas almas piedosas também. Mas há também curiosidade, dessas meio mórbidas, e outras desinteressadas.

  - Como posso diminuir a dor dos meus?

  - Eles v?o se refazer. é sobre você a nossa conversa aqui.

  - Como assim?

  - Todos no planeta já passaram e passam por isso. Todos têm pontos de saída da vida. Eles têm apenas que decidir se v?o aceitar a saída, ou n?o.

  - Ent?o, quando alguém morre é porque aceitou algum ponto de saída? – perguntei tomado de curiosidade, nem me questionando como aquele assunto n?o me causava espanto.

  - Alguns s?o pontos onde ele pode decidir, outros n?o, s?o saídas definitivas, contratadas antes da reencarna??o. Seu caso é um ponto onde você por decidir.

  - Ent?o quer dizer que, se eu disser que quero partir, minha morte permanecerá, e se eu disser que quero voltar, vou continuar vivo?

  - Mais ou menos isso.

  - Como vai ser minha vida se eu resolver continuar? Sabe, estou me perguntando se desejo mesmo continuar.

  - Essa n?o é a pergunta certa, meu amigo. A pergunta é: o que será melhor para mim?

  - Eu acho que continuar ou parar ficou bem claro – falei com tranquilidade.

  - Acha mesmo? Caso diga que quer sair, tem que saber sem sombra de dúvida que quer mesmo deixar o jogo, deixar a vida, desistir. Você é muito novo, e pode fazer muita coisa...

  - N?o gosto da minha vida – falei num sussurro. – Acho que...

  - Você n?o está aqui para gostar ou desgostar. Você escolheu vir aqui para se lembrar, para caminhar em uma trilha de volta para casa, para experimentar coisas de imenso valor. Você, meu amigo, como todos os outros que aqui est?o, veio para participar de uma experiência de experimentar uma cria??o, individual e coletiva.

  De súbito, enquanto o observava com aten??o, algo explodiu em volta de mim. Minha família estava ali, reunida, meus pais e meus inúmeros irm?os. E, ainda, havia risos e choros, e crian?as correndo que eu sabia que eram meus, e meu pai envelhecendo em paz rodeado por nós, buscando sua própria reden??o, da qual seriamos todos nós pe?as fundamentais. E vi meus irm?os e irm?s, sempre se apoiando e ajudando, completos e confiantes. E vi minha luz aumentando devagar no tempo que corria. Mas, o que mais me chocou foi ver, em algum ponto no futuro, ter descoberto a linda, imensa e fugidia chance que eu arriscava perder de evoluir se acaso decidisse parar ali. Me vi triste à frente por saber que tinha tido a chance que tanto buscara, e que n?o havia visto e valorizado. Ent?o, havia a grande verdade em meu cora??o, de que eu teria que tentar de novo, nascer de novo, sonhando esperan?oso em conseguir as condi??es novamente, que poderiam ser até mesmo em piores condi??es da que agora usufruía. Eu poderia conseguir, em uma nova tentativa, uma família disfuncional, ou um tempo ou um local onde o meu sacrifício teria que ser maior. Agora, era tudo perfeito para o que eu me propunha: família, local, condi??es sociais, período de tempo... Tudo estava ali. E, maravilha das maravilhas: estávamos todos ali, e havíamos feito um contrato para estarmos ali, todos nós...

  Ao despertar daquelas vis?es dei com aqueles olhos incríveis me examinando. Havia um sorriso maroto no rosto.

  - Me manipulou?

  - N?o, apenas te mostrei o que perderia, te mostrei que terá que buscar outra oportunidade para viver novamente o que agora poderá deixar para trás, se resolver aceitar esse ponto de saída. Mas, as condi??es nunca ser?o as mesmas. Talvez sejam piores da que tem agora, talvez sejam melhores. Olhe, já tivemos essa conversa, inúmeras vezes antes, em outros pontos de saída. Em cada uma delas você respirou fundo, os olhos meio cansados. Ent?o você se virou nessas vezes para mim e me disse: N?o posso desistir. Quero voltar!

  Eu o observei com cuidado, e soube que ele estava certo.

  - Ent?o, se isso já aconteceu outras vezes, n?o vou me lembrar disso, dessa nossa conversa de agora, como n?o me lembro das outras, n?o é mesmo?

  - N?o, n?o vai.

  - Mas, se eu resolver continuar, eu ficarei aleijado? Estarei muito machucado? Vai haver alguma sequela...

  - Meu amigo, se n?o aceitar esse ponto de saída, você será colocado momentos antes de sua morte, e nós o ajudaremos a sair de lá com vida. Você seguirá seu caminho, esquecido de sua morte.

  Fiquei em silêncio. N?o estava mais em dúvida, mas queria apenas me deixar ali, naquela paz, naquela suavidade, por só mais um tempinho.

  Inspirei profundamente.

  - Mais uma vez, ent?o, n?o posso desistir. Quero voltar!

  Ent?o, lá estava eu, a ponto de saltar...

  No exato momento em que ia me jogar para a pequena plataforma, algo me fez aguardar mais um microssegundo. N?o era hesita??o, era como aguardar um último recurso.

  E ent?o...

  Meu ded?o direito tocou um gr?o saliente na pedra lisa, e meu deslizar cessou.

  Meu corpo ficou teso, toda a for?a e peso no ded?o, seguro por aquele minúsculo gr?o.

  Imóvel, procurei sentir o gr?o minúsculo que me salvara. Era incrível ter todo o meu peso freado e sustentado apenas por aquele pequenino gr?o.

  Senti meu cora??o e meu corpo, e vi que eu tinha que aproveitar aquela chance para escapar.

  Com um cuidado extremo e lento, sem virar o tronco, estiquei meu bra?o direito para trás, e toquei em relva. Segurei e fiz for?a, e a relva se rompeu em minha m?o. Sem dobrar o corpo tateei novamente atrás de mim, até que consegui um novo tufo de grama, que segurei com suavidade e firmeza.

  Puxei com cuidado em minha dire??o.

  Ele n?o se rompeu. Ent?o apliquei um pouco mais de for?a no tufo, e ele aguentou.

  Com cuidado até mesmo para respirar, dei um pequeno giro no tronco. Vi uma pedra mais seca e segura à direita. Aplicando uma for?a controlada na relva e no gr?o de areia, tirei minha perna esquerda e a apoiei na pedra, meu corpo quase torcido como um parafuso. Apliquei mais for?a e pus o peso do corpo sobre a perna esquerda, e me soltei do pequeno gr?o.

  N?o demorou e logo sai daquele lugar. Com a mesma calma, como se nada de diferente tivesse ocorrido, parti atrás da minha irm? e de seu namorado.

Recommended Popular Novels