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Capítulo 198 - Macta

  O Collectio cortava o céu como uma cicatriz negra, mas agora, relutante, descia ao nível do mar, onde a vastid?o sem fronteiras transformava-se em um mundo espesso e pesado. Uma jaula líquida.

  O trajeto foi longo e implacável. Quatro longas semanas nas quais serpentearam a borda da América do Sul, subindo até a América Central, encarando apenas o vazio das nuvens.

  Depois, mais sete dias se arrastaram até que, finalmente, avistaram um sinal de civiliza??o: um navio. Uma fragata do modelo Gale?o de Saint-Malo, uma embarca??o robusta, de casco cinzento e madeira refor?ada, projetada para suportar n?o só as intempéries do oceano, mas também o peso de cinquenta almas a bordo.

  Em seus três mastros, velas brancas, mas remendadas, flamulavam contra a brisa salgada, e uma fileira de pequenos canh?es podia ser vista ao longo do casco. N?o estavam em posi??o de disparo. N?o Ainda.

  Ana n?o gostava do mar. Nunca gostara. O ar, pelo menos, era uma promessa; o mar, um abismo. Claro, n?o se importava com praias, até tinha certo apre?o por elas, mas ficar no meio da imensid?o azul? Isso era uma merda.

  No novo mundo, tal sentimento era ainda pior. Se olhasse com aten??o o suficiente, sem sequer precisar aprimorar a vis?o com mana, poderia notar enormes vultos deslizando sob a superfície, sombras t?o vastas que n?o podiam ser apenas ilus?o. Se fossem baleias, já seria ruim. Tais seres majestosos a deixavam inquieta. No entanto, sabia que era algo ainda pior.

  A água encobria segredos, e Ana desprezava segredos que n?o podia quebrar.

  Mas n?o havia escolha. O caminho era este, e estavam perto.

  — é a primeira vez que sai do Brasil? — A pergunta veio casual, mas havia algo no tom de Ana, algo que n?o combinava com a tranquilidade de sua postura. Uma m?o firme no leme, a outra relaxada ao lado do corpo. Seu olhar fixo na linha do horizonte. N?o olhou para o homem ao seu lado, nem precisava.

  Alex n?o respondeu de imediato. Suas m?os semi-metálicas apoiavam-se em seu cintur?o, onde repousavam duas pistolas de design estranho, moldadas para aguentar tanto sua temperatura anormal quanto sua for?a bruta. Sua presen?a era quente, literalmente fumegante, enquanto ponderava a quest?o.

  — Depende. Teve a vez que fui para Aurórea, mas fiquei o tempo todo no meu vilarejo, ent?o n?o conta — sua voz era séria, mas n?o rígida. Um resquício de memória atravessou seus olhos. — Ah. E teve aquela vez em Leviathan… mas também n?o saí da cidade da baleia, apesar de termos dado a volta ao mundo.

  — ótimo, ótimo. Ent?o é uma boa primeira viagem. O mar caribenho é lindo.

  Alex bufou, desviando o olhar. N?o duvidava exatamente das palavras da capit?. Havia uma verdade oculta na forma como ela falava, como se aquele peda?o de oceano estivesse gravado em sua mente de forma quase íntima. Mas era absurdo. Quando diabos Ana teria estado ali? Com nove anos? E ainda assim, lembrava de detalhes como se tivesse acabado de partir? Nem ferrando.

  — T? falando sério — repetiu a mulher.

  O Caribe, na memória dela, n?o era apenas um local. Era um instante congelado no tempo. O azul do mar era mais profundo do que em qualquer outro canto do mundo. As ilhas espalhadas pareciam pinceladas de verde sobre uma tela infinita. Os ventos eram cálidos, cheiravam a especiarias, pólvora e promessas vazias, mesmo quando a humanidade havia sumido.

  Apesar de nunca ter visto pessoalmente em seu estado populado, em suas visitas solitárias sempre imaginara o local com música. N?o queria admitir, mas torcia para ser assim agora que a humanidade voltara a existir. Estava animada para chegar.

  — Tá, Ana. De qualquer forma, a gente tá chegando perto deles. Você vai mesmo fazer isso?

  A ex rainha se demorou na resposta, sentindo a brisa esfriar contra seu rosto. O gale?o também já os havia avistado. Mesmo menores, eram lentos, e a distancia diminuía rapidamente. Com isso em mente, a decis?o deles veio de imediato: uma bandeira branca foi erguida.

  N?o uma bandeira qualquer. Era anormalmente longa, feita de um tecido fino que ondulava sem resistência contra o vento. N?o tremulava apenas como um sinal de paz, mas como uma confiss?o.

  Talvez n?o quisessem ser confundidos com piratas. Talvez apenas desejassem evitar um conflito desnecessário. Mas Ana sabia a real raz?o de sua presen?a ali.

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  Era medo.

  As grandes velas negras do Collectio eram um presságio por si só, mas agora carregavam algo novo: um estandarte bordado à m?o, marcado pela imagem de uma máscara de chifres rachados. O símbolo de Insídia — ou quase isso. A marca de um reino caído e provavelmente desconhecido, mas que, contra toda lógica, ainda respirava nos cora??es de seus órf?os.

  Ana sorriu de forma quase imperceptível.

  — Sim — sua voz foi um murmúrio carregado de certeza. — A primeira coisa que fizeram foi se render. S?o pessoas fracas.

  — N?o, s?o só pessoas normais. Se bobear, comerciantes.

  — Tá aí mais um motivo pra gente pegar tudo que eles têm. Espero que sejam ricos.

  Alex deslizou uma das m?os metálicas pelo rosto de forma resignada, os dedos inquietos massageando suas fei??es sutilmente deformadas.

  — A porcaria do depósito n?o estava abarrotada de suprimentos? — resmungou, sem mudar a postura.

  — Sim. — A capit? riu, inclinando-se contra o leme. N?o uma risada alta ou debochada, mas algo carregado de um entendimento cruel. Girou o ombro, estalando as articula??es antes de continuar, como se tudo isso fosse algo que n?o precisava de pressa. — Pra um ano? Talvez uns dez meses? Se liga, Alex... Estamos na nossa primeira viagem e já se foram quase dois meses. Essa porra de mundo tá grande demais.

  Infelizmente, o homem entendia que n?o eram palavras vazias. Podia ignorar a ironia dela, mas n?o os números. A realidade se impunha sem precisar de amea?as. Suprimentos sempre pareciam durar menos do que deveriam. Ainda mais quando se navegava pelo desconhecido, sem margem para erro.

  Suspiros escaparam de seus lábios como vapor.

  — Ser fraco significa perder tudo.

  — Quê?

  — Nada. Vamos terminar isso logo. — O homem sentia pena do que estava prestes a acontecer. Mas culpa? Isso já n?o existia em seu olhar.

  — Lembra do que a gente conversou. Sem gastar bala até termos um estoque decente. E sem usar os canh?es. Quero o barco intacto.

  — Você gosta de complicar as coisas...

  — Ent?o n?o consegue? — A voz de Ana ainda trazia aquele tom pregui?oso, casual, mas os olhos permaneciam fixos nele.

  — Consigo.

  Sem mais conversa, Alex virou-se e come?ou a caminhar pelo convés. Seus passos eram pesados, controlados. Parou no centro da embarca??o e ergueu a voz, firme o suficiente para ser ouvido, mas sem romper a barreira do outro navio.

  — Macta.

  Foi uma palavra só. Curta. Bruta. Sem espa?o para dúvidas.

  Diferente de um grito de guerra ou um anúncio de batalha, Macta era um comando seco, frio como lamina contra pele. Em latim, significava "sacrificar", "exterminar", "glorificar pelo sangue". N?o havia nobreza na escolha do termo, nem metáforas poéticas sobre a noite se fechando ou o destino inevitável. Era um pedido simples.

  Um chamado para a matan?a.

  O Collectio respondeu como um predador ati?ado. Espadas deslizaram em couro e a?o, laminas saíram de bainhas como presas descobrindo o ar pela primeira vez. Facas passaram de m?o em m?o, porretes foram testados contra as palmas calejadas de seus donos, cordas foram esticadas como la?os prestes a se fechar. Movimentos coordenados, ensaiados, precisos. Sejam mascarados ou corrompidos, n?o precisavam de mais explica??es.

  N?o era um ataque impulsivo. N?o era uma explos?o de fúria cega.

  Era um ato cirúrgico, calculado, implacável.

  Arriaram parte das velas, diminuindo a velocidade para que a inércia n?o levasse o Collectio além do necessário. O ajuste era mínimo, mas suficiente. Por mais que Ana pudesse controlar a embarca??o com seu toque sutil nos céus, ali a resistência era outra, n?o deslizavam com a mesma leveza; a água n?o era sua aliada.

  Mas isso n?o importava. A aproxima??o havia sido perfeita.

  O casco rangia ao se alinhar lado a lado com a fragata adversária. Do outro lado, marujos se agitavam, inseguros, confusos. M?os trêmulas agarravam armas de ferro gasto e facas de fio duvidoso — ferramentas simples, feitas mais para consolo do que para combate. Nenhum deles gritou ordens de imediato. Ainda tentavam entender o que estava acontecendo.

  Mal sabiam que n?o haveria tempo para isso. Os primeiros joelhos atingiram a madeira com baques surdos, um por um. N?o foi medo. N?o foi hesita??o. Foi algo mais cruel. Um roubo invisível, arrancando-lhes a for?a antes que percebessem que já haviam perdido.

  O massacre havia come?ado antes mesmo do primeiro golpe ser desferido.

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  Ficaremos sem imagens por um tempo, mas logo volto a postar!

  Estou meio sem tempo e n?o est?o saindo resultados bons...

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