Gaspar circulava lentamente a velha mesa de madeira, cada passo firme ecoando no silêncio denso da sala. O cheiro acre de sangue seco se misturava ao aroma pesado da madeira úmida. Seu rosto estava rígido como a?o, veias pulsando visivelmente no pesco?o, têmporas latejando enquanto lutava para conter sua raiva.
Parando abruptamente, Gaspar fixou um olhar penetrante em Sérvulo. O rosto tomado pela fúria contida, a mandíbula cerrada, o olhar faiscando sob as sobrancelhas tensas. Ainda assim, quando falou, sua voz saiu baixa e serena.
— Você realmente n?o consegue se controlar, n?o é? — disse, com tom gélido, cada palavra pesando como chumbo. O tom calmo contrastava com as veias saltadas em sua cabe?a. — Era um informante valioso...
Sérvulo manteve os olhos baixos, ombros tensos, punhos cerrados ao lado do corpo, a mandíbula rígida. Suportava a repreens?o como quem já sabia que ela viria.
Gaspar inspirou fundo, o ar entrando de forma pesada, antes de golpear a mesa com um movimento explosivo. A madeira rachou violentamente, o estalo seco ecoando pelas paredes. Estilha?os voaram, e o corpo sem vida do Dois de Ouros escorregou lentamente até tocar o ch?o com um baque surdo.
— E agora, como pretende capturar a ladra sem o informante dela? — continuou, em tom baixo, porém letal, apontando com o dedo.
Sérvulo permaneceu imóvel. Um músculo pulsava visivelmente em sua têmpora, mas sua resposta foi apenas um sussurro:
— Me desculpe, chefe. Eu me deixei levar.
Gaspar retirou duas cartas douradas do naipe de Ouros do bolso interno do terno: o Valete e o Dez. As cartas emitiram um brilho sutil e dourado ao serem reveladas. Instantaneamente, o corpo de Sérvulo enrijeceu, como se uma for?a invisível o imobilizasse por completo. Seu corpo travou, os músculos congelados pela autoridade real de Gaspar. Seus olhos arregalados refletiam o panico silencioso do momento.
Calmamente, Gaspar retirou uma pequena faca, colocando-a cuidadosamente sobre os destro?os da mesa.
— Você precisa se desculpar corretamente... — disse com a calma metódica de um pai repreendendo um filho teimoso. Com um gesto sutil, liberou Sérvulo da for?a que o paralisava, como se cortasse os fios de uma marionete.
Sérvulo vacilou levemente, mas recuperou o equilíbrio com rapidez. Caminhou até a mesa destruída, pegou a faca e, com firmeza, cortou o dedo mindinho com um único golpe seco e preciso. Nenhuma careta, nenhum som. Mas por dentro, uma centelha de dor e humilha??o ardia, abafada por anos de lealdade e disciplina. O sangue escorreu lentamente, escurecendo o ch?o sob seus pés.
Gaspar ajeitou lentamente a manga do terno, desviando o olhar.
— Dante! — chamou ao sair da sala. — Traga o Três para cuidar desse sangramento.
Ao deixar o aposento brutal, Gaspar caminhou pela cobertura do casino, onde tubula??es metálicas serpenteavam entre as engrenagens de ventila??o e geradores barulhentos. Caminhou até o elevador de servi?o, apertando o bot?o com firmeza. Quando as portas se fecharam, permitiu-se soltar o ar devagar.
Ajustou o terno com precis?o, depois a gravata, cada movimento mais calmo que o anterior. Enquanto o elevador descia, a tens?o se dissolvia em silêncio, como se deixasse para trás uma camada de sua própria fúria. Ao chegar aos corredores dourados do casino, o ar era mais leve, o som dos passos abafado pelos tapetes luxuosos. O contraste entre a violência fria e a sofistica??o calorosa do sal?o principal era quase absurdo.
Olivia o aguardava ali, em meio às luzes suaves e ao aroma de flores exóticas. Sua postura elegante, o sorriso contido e o olhar atento o tranquilizaram. Ela se aproximou com leveza, como quem conhece profundamente o terreno emocional do homem ao seu lado.
— Nem sempre se pode ganhar, n?o é? — disse com suavidade, envolvendo o bra?o dele com familiaridade reconfortante. — Desculpe por insistir naquele plano com Sérvulo e Dante. N?o imaginava que sairia do controle assim.
Gaspar suspirou profundamente, apertando com leveza a m?o dela sobre seu bra?o.
— N?o precisa se culpar, Olivia. Se Dante tivesse ido sozinho, as consequências poderiam ter sido piores.
Ela sorriu com gentileza, mantendo o toque por mais alguns segundos, antes de guiá-lo pelo sal?o opulento.
— Giovani certamente vai melhorar seu humor. O restaurante está cheio hoje, e ele está particularmente inspirado. Você deveria comer alguma coisa.
Gaspar soltou um leve sorriso, permitindo-se relaxar sob o toque suave de Olivia.
— Trazer Giovani como nosso Seis foi realmente maravilhoso. O Golden Casino-Resort agora tem o melhor restaurante da cidade. — Olivia parou brevemente, inclinando levemente a cabe?a para observá-lo melhor. Seus olhos buscaram os dele com sutileza. — O que mais aconteceu além do fiasco de ontem?
Gaspar franziu a testa, o sorriso desaparecendo por completo.
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— Perdemos o rato. Vai ser difícil rastrear a ladra agora.
Olivia apertou mais a m?o dele, parando o passo. Seus olhos estavam firmes, mas havia algo terno ali também.
— Quer que eu mesma cuide disso? Posso lidar com a ladra por você.
Gaspar hesitou, os olhos fixos num ponto distante do sal?o. Seu maxilar travou por um instante. Apertou brevemente a m?o de Olivia, absorvendo o calor do gesto, como se ele fosse tudo que o ancorava naquele momento.
A luz suave da manh? entrava pela cobertura, iluminando a selva de pedra de Crownia. Arranha-céus espelhados e blocos maci?os de concreto formavam um horizonte caótico, repleto de antenas, letreiros digitais e torres de comunica??o. Mesmo cedo, a cidade já pulsava com energia latente. Na cobertura espa?osa e elegante, o som discreto de bossa-nova misturava-se ao ritmo leve dos pincéis de maquiagem, criando uma calma planejada.
Sena estava em pé diante do espelho do banheiro, aplicando o delineador com movimentos lentos e precisos. Já pronta para o evento, vestia uma blusa preta de al?a rendada, cal?a de alfaiataria escura e um blazer bege claro — um visual elegante, firme e calculado. Os cabelos castanhos estavam soltos, bem alinhados, caindo com suavidade sobre os ombros. O rosto mantinha-se impassível, quase sereno, como se o mundo estivesse em suspenso. Mas nos olhos brilhava a intensidade silenciosa de quem se preparava para a miss?o da sua vida.
Encostado na moldura da porta, do lado de fora, Sebastian aguardava em silêncio. Vestia uma camisa social clara, com os primeiros bot?es abertos, e um blazer leve que ressaltava sua postura casual, porém elegante. As m?os repousavam nos bolsos da cal?a escura. Seus olhos acompanhavam cada movimento de Sena através do reflexo no espelho.
— Você vai mesmo prosseguir com esse plano? — perguntou, com a voz baixa, mas firme.
Sena n?o desviou o olhar. Concluiu o tra?o no canto do olho e piscou devagar, como quem sela uma decis?o.
— Já decidi. Alguém precisa colocar ordem nesse jogo, Sebastian. A fac??o precisa do seu rei urgentemente. Além disso... Mirio n?o parece ter pressa para lidar com isso.
Sebastian franziu o cenho, o maxilar se contraindo levemente.
— Ele pode n?o ser confiável, mas o plano dele para manter os negócios ilícitos foi muito bem executado. — Ele fez uma pausa. — Ele inclusive pensou em nos mandar para o galp?o para lidar com a fac??o de Ouros a tempo.
Sena se virou com calma, encarando-o de soslaio por cima do ombro.
— Mirio pode ser eficiente, mas n?o demonstrou pressa alguma em trazer nosso rei para a fac??o. Essa demora é um risco enorme. Dá tempo demais para os outros reis agirem.
O silêncio pairou entre os dois, preenchido apenas pela melodia distante e pelo discreto estalo do perfume que Sena aplicava no pesco?o.
— Ent?o você vai se expor. Ir pessoalmente até ela. é isso? — insistiu Sebastian, a voz mais tensa agora.
Sena franziu os lábios, visivelmente aborrecida, e suspirou fechando o frasco de perfume com um clique seco.
— Ainda assim, eu quem preciso resolver isso.
Ela saiu do banheiro, ajeitando a manga do blazer com um movimento decidido.
— Como estou?
Sebastian ergueu levemente o queixo, admirando-a com um olhar suave.
— Bela e elegante, como sempre.
Sena sorriu discretamente.
— Obrigada. Agora venha comigo.
Sebastian suspirou e a seguiu para fora do apartamento.
No host club Golden Boys, Maria estava sentada confortavelmente em um sofá amplo. Diante dela, Ciel inclinou-se ligeiramente, segurando a garrafa de champanhe com ambas as m?os, como quem manipula um frasco de essência rara. Ele girou a garrafa com delicadeza, afastando a espuma acumulada, e verteu o líquido dourado na ta?a de cristal com um fio contínuo e preciso, sem derramar uma gota sequer. Cada movimento era suave e coreografado, como se estivesse servindo perfume em vez de bebida, sob a luz suave das lampadas que criavam uma atmosfera de luxo discreto. Ao redor, Marcel e Arisa estavam de pé, com express?es sérias.
— Sérvulo e Dante apareceram por lá — comentou Arisa, o tom carregado de impaciência. — Virou um inferno em minutos.
Maria suspirou, recostando-se no sofá enquanto segurava delicadamente sua ta?a.
— Quando Miku avisou que Sérvulo estava indo ao porto, já era tarde demais. — Ela ergueu os olhos para Marcel. — Você tá bem?
Marcel assentiu, sereno como sempre, mantendo sua habitual compostura.
— Nada demais, madame.
Ciel sentou-se no sofá ao lado de Maria, servindo a própria ta?a de champanhe.
— Sérvulo me dá arrepios — disse Maria com um leve estremecimento. — é por isso que uma das minhas condi??es para Gaspar usar meus estabelecimentos é nunca trazê-lo junto.
Marcel sorriu discretamente, concordando em silêncio.
Maria ent?o endireitou a postura, encarando Marcel com interesse.
— Como foi a negocia??o?
Marcel ponderou por um instante antes de responder:
— As cartas que comandam a opera??o se mostraram bastante abertas ao diálogo. Creio que ser?o facilmente convencidas, mas fizeram uma exigência.
Maria ergueu uma sobrancelha, curiosa, enquanto aconchegava-se ao corpo de Ciel.
— E qual foi a exigência?
— Eles querem que eu fique fixo no local por um tempo — explicou Marcel, calmamente.
Ciel franziu os lábios, parecendo um pouco preocupado.
— Parece perigoso deixar a madame sem seu ás por perto.
Maria voltou-se para Arisa.
— O que você acha disso?
Arisa cruzou os bra?os, refletindo antes de responder:
— é uma exigência razoável. Ter um ás presente é basicamente uma forma de espantar outras fac??es. — Ela fez uma pausa breve antes de acrescentar, cautelosa: — No entanto, considero arriscado que Marcel fique longe por muito tempo.
Maria sorriu suavemente e inclinou-se, acariciando delicadamente o rosto de Ciel.
— Meu querido e belo Ciel pode me manter segura, n?o pode?
Ciel retribuiu o sorriso de maneira desajeitada, desviando brevemente o olhar e ajeitando-se no sofá, visivelmente desconfortável com a ideia.
Maria ficou em silêncio por um breve momento, ent?o completou com uma confian?a natural:
— Mesmo sem Marcel por perto, eu ainda sou um rei. — Ela fez uma pausa, um sorriso discreto surgindo nos lábios.
— E mais... é quest?o de tempo até que eu consiga um segundo baralho. — Seus olhos brilharam com a alegria de uma crian?a prestes a ganhar o brinquedo mais desejado do mundo. — Quando eu conseguir outro baralho, podemos fazer pactos com as antigas cartas de Federico e oficializar o acordo pelo ponto.
Ciel e Arisa assentiram em silêncio, trocando um olhar breve.
Maria recostou-se novamente, girando a ta?a de champanhe entre os dedos com lentid?o.
— Mas ainda assim, vou aguardar Vince concluir a tarefa. Só ent?o aceitarei o acordo.
As palavras pairaram no ar por um momento, antes de serem recebidas com discretos suspiros de alívio. Arisa descruzou os bra?os, relaxando levemente os ombros. Marcel inclinou brevemente a cabe?a em aprova??o silenciosa. Ciel soltou o ar de forma imperceptível, permitindo-se um pequeno sorriso contido.
Maria e Ciel.