Com um gesto seco, Lucia jogou o estranho coelho chifrudo em dire??o a Sérgio. A carca?a ainda quente bateu com um som molhado nas folhas, rolando até parar perto da mochila dele, que claramente n?o estava pronta para isso. Sem dizer mais nada, ela se agachou em frente ao cadáver — do animal, no caso — e come?ou a remover com os dedos firmes os órg?os que considerava inúteis.
Fazia isso sem pressa e sem pudor, como quem reorganiza gavetas. N?o gostava particularmente de coelhos. Tinham cheiro forte demais e músculos fibrosos. Mas lembravam a infancia. Eram abundantes na regi?o do abismo onde cresceu, e figuravam tanto no cardápio quanto nas histórias de morte da vila.
Aprendera cedo que os coelhos, por mais fofos que parecessem, mordiam. E cavavam. E matavam, se você vacilasse.
Um conceito simples, mas útil.
Também a lembravam de Ana, mas ela tinha decidido, pelo menos por enquanto, manter essas memórias bem guardadas. N?o era o momento.
— N?o vai me ajudar?
— Claro que n?o. A gente foi bem claro no acordo — respondeu a garota.
— N?o é bem assim... — resmungou o médico, ajeitando-se contra a árvore como se aquele peda?o de casca fosse uma poltrona com encosto reclinável.
— é sim. Você frisou bastante a parte do “eu cuido da menina, você me leva pra capital em seguran?a”. Comida, abrigo e problemas emocionais n?o estavam no pacote. — Ela ergueu os olhos por um segundo, depois voltou ao fígado, que ainda pulsava com um calor desagradável. — Já t? sendo gentil trazendo um coelho pra você. Gentil demais pra alguém t?o folgado, talvez.
Com um suspiro resignado, o homem pegou o animal. O coelho escorregou da beirada de sua mochila e caiu em seu colo com um baque gorduroso.
— Pode pelo menos me ensinar? — perguntou, sem esperan?a, mas com uma gota de humildade mal disfar?ada.
Lucia o encarou com o olhar um pouco estranho.
— Te ensinar o quê? Você n?o é médico? é só cortar.
— Clínico geral, n?o cirurgi?o.
— E tem diferen?a?
— Pra uma crian?a idiota que só tem mana na cabe?a, n?o.
Lucia assentiu lentamente, em silêncio, e voltou para o coelho com a tranquilidade de quem considerava o assunto encerrado.
— Ent?o a crian?a idiota aqui vai cuidar da própria comida.
Sérgio fechou os olhos por um segundo, n?o para pensar — só para sair dali por um breve instante, nem que fosse só para se esconder dentro do próprio cranio. Quando os abriu novamente, aceitou melhor a realidade.
— Tá. Desculpa.
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O pedido saiu meio desajeitado, como se tivesse sido esquecido no fundo da garganta e achado por acidente. Ele ajeitou-se na pedra onde estava sentado, observando os movimentos meticulosos da menina. Era estranho como ela fazia aquilo com tanta calma. Cortava, removia, limpava. N?o havia hesita??o nem pressa. Também n?o havia qualquer resquício de prazer. Era só... necessário.
O silêncio que se seguiu foi interrompido apenas pelo estalo distante de madeira no fogo e pelo contínuo ruído úmido de vísceras sendo puxadas de um corpo pequeno demais para abrigar tanto volume.
Até que Lucia, atraída por um som quase imperceptível vindo de Eva, ergueu novamente os olhos. Pela primeira vez desde o ocorrido, conseguiu olhar para ela sem o impulso automático de checar pulsos, contar as respira??es ou apaziguar tra?os de convuls?o. A jovem arqueira só estava ali, imóvel — e isso, por agora, bastava. N?o era cura. Mas também n?o era o fim. O rosto dela parecia mais leve, como se um fio invisível que a prendia à beira da morte tivesse afrouxado, mesmo que ninguém soubesse por quanto tempo.
A garota soltou um suspiro mais longo, um daqueles que n?o se ouvem, só se sentem. Olhou de novo para o médico. O homem ainda a observava, incerto de como come?ar.
— Tá bom — disse por fim, entregando uma faca de cabo torto e empurrando o animal já sem dignidade para as m?os dele. — Eu cuido da limpeza. Você prepara.
Sérgio piscou, como se esperasse que aquilo viesse seguido de uma ironia maior, ou que fosse parte de algum plano para humilhá-lo publicamente. Mas n?o. Era só um gesto prático. O que, aliás, tornava tudo mais desconfortável.
— Sério?
— Você deve saber pelo menos cozinhar, né?
— Isso eu sei.
Com a faca na m?o e o coelho em peda?os, come?ou a fatiar em tiras finas, como quem reaprende um hábito antigo, desses que o corpo n?o esquece, mas executa com mais lentid?o. Cortava com precis?o irregular, como se alternasse entre memória e tentativa.
Em dado momento, os dedos do homem escorregaram na cartilagem oleosa da pata traseira, abrindo um pequeno corte que o fez praguejar baixinho, mais de frustra??o do que dor. Lucia estendeu um pano sem comentar nada. Ele aceitou, hesitante. N?o foi um gesto de amizade, tampouco de solidariedade. Foi só... conveniente. Mas naquele contexto, conveniência já parecia algo próximo de gentileza.
Isso, somado ao cheiro do sangue fresco que se misturava à fuma?a morna da fogueira, criava um ambiente quase doméstico.
Seguiram ent?o trabalhando em silêncio. Um silêncio cheio de ruído — o ruído de uma convivência que ainda n?o sabia onde pisar, de pensamentos n?o ditos e de uma estrada longa demais ainda por come?ar.
Garm, por sua vez, os observava com um olho só, a cabe?a repousada sobre as patas dianteiras, numa posi??o que sugeria descanso, mas também desconfian?a. Já havia ca?ado antes de tudo isso — se alimentado o suficiente, algo que infelizmente Lucia n?o conseguiria ajudar —, mas ainda teve que correr uma distancia que qualquer outro da alcateia consideraria imprudente. Ent?o agora, só queria dormir. Só isso. Um pouco de sono, de preferência sem ninguém tentando matá-los no meio.
Carregar quase noventa quilos a mais n?o era impossível. Ele era grande, forte, disciplinado. Mas também n?o era agradável. Especialmente com os dois humanos sempre mexendo em coisas, falando demais ou n?o falando o suficiente.
O médico dissera que, se tudo desse certo — e ele frisou o “se” com gosto — levariam cerca de uma semana para chegar à capital. Uma semana do velho mundo, disse ele, como se isso significasse algo para o animal. Garm sabia medir tempo em passos, em batimentos, em sol e chuva. N?o em conceitos sem sentido. Mas mesmo dentro da lógica do animal, uma semana soava... absurda.
A conta mais realista era ainda pior. Pelo ritmo deles, parando para respirar, para comer, para discutir banalidades e verificar o estado da garota a cada hora, talvez levassem três vezes isso. Isso se n?o errassem o caminho, se n?o fossem ca?ados, se a sorte continuasse ao menos fingindo que existia.
Ainda assim, havia um detalhe curioso naquela fala do humano. Ele mencionou um nome estranho: “precisamos chegar na BR se quisermos que essa garota sobreviva. N?o temos tempo”. Dissera que era uma rodovia federal — outras palavras esquisitas —, mas, vendo que ninguém entendeu, explicou de um jeito mais visual: “uma cobra negra que corta a floresta”.
Garm achou essa descri??o mais interessante. N?o acreditava que uma cobra assim existisse de verdade, claro, mas era uma imagem divertida. Uma serpente gigante e imóvel, que atravessava o verde sem se perder, guiando os que a seguiam. Ele sabia que n?o era isso. Sabia que humanos davam nomes absurdos às coisas mais banais. Mas também sabia que às vezes, só às vezes, o absurdo era a parte verdadeira.
Gostaria de ver essa tal cobra. De longe, de preferência, e só se n?o fosse perigosa.
Enfim, adormeceu.
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Ficaremos sem imagens por um tempo, mas logo volto a postar!
Estou meio sem tempo e n?o est?o saindo resultados bons...