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Capítulo 202 - Diagnóstico

  — A garota acordou.

  Ninguém comemorou.

  O médico parecia entediado. N?o do tipo que boceja ou estala os dedos para fingir interesse, mas sim do tipo que já tinha desistido de se importar antes mesmo de chegar ali. Estava encostado na porta, olhos fundos observando a neblina do lado de fora, como se procurasse algo mais interessante do que uma jovem morrendo — o que, para ser justo, talvez fosse mesmo difícil de encontrar naquela vila.

  Lúcia ouviu o timbre da voz seca e se levantou. Trocar olhares com Garm virou hábito, como confirmar com o mundo que ela n?o estava t?o sozinha quanto parecia. Em seguida, encarou o homem, esperando algo útil.

  — Ela tá bem?

  — N?o.

  Sem esfor?o para dramatiza??es, ele virou as costas e entrou no que chamavam de consultório — uma palavra generosa para um c?modo que parecia mais uma dispensa de entulho úmido. Lúcia o seguiu, subindo pelas escadas de corda improvisadas que rangiam como se pedissem desculpas por ainda estarem de pé.

  A vila tinha pouco mais que uma dúzia de moradores, todos espalhados em ocazinhas de madeira elevada. Um sistema pensado para afastar predadores — n?o com muito sucesso, pois a morte era vista no rosto de todos. O curioso era a homogeneidade: todos ali eram puros. Nenhum corrompido, nenhum mutante, ninguém com olhos que brilham no escuro ou bra?os que se estendem mais do que deviam. Só carne e medo. Isso incomodava.

  O grupo pretendia seguir viagem. O lugar era estranho demais para merecer confian?a. Mas Eva n?o colaborava: sua respira??o ficava cada vez mais irregular, e as op??es eram basicamente ficar ou enterrá-la em algum canto úmido da floresta. Ficaram. A vila, para seu crédito, n?o tentou fingir hospitalidade. N?o ofereceram p?o, nem chá, nem qualquer gentileza desconcertante. Eram gananciosos. Isso era melhor. Mais fácil de entender.

  Pelo servi?o duvidoso do médico, tomaram todas as armas do grupo. Pelo menos n?o cobraram taxa extra por respirar.

  Dentro do consultório, a ilumina??o era feita por uma lamparina pendurada em um prego torto. A luz tremia como se também estivesse desconfortável.

  Eva estava estendida numa tábua que fazia o papel de leito. Sua boca entreaberta ainda exibia tra?os de sangue seco, e sua pele pálida parecia absorver o amarelado da chama.

  — Vocês têm certeza que querem manter essa aqui viva? — perguntou o médico, agachado ao lado da mesa. Cutucava o pesco?o da garota com dois dedos, como se testasse um p?o amanhecido. — Ela tá mais pra lá do que pra cá.

  Balan?ou uma m?o diante dos olhos completamente brancos de Eva. Nenhuma rea??o. Nenhum piscar. Nada que sugerisse que havia alguém dentro daquele corpo.

  Lúcia se aproximou. Estava mais cansada do que preocupada, o que talvez dissesse muito sobre o tipo de cansa?o.

  — Vai conseguir curar?

  O homem fungou, puxando o lábio inferior da garota e examinando como quem avalia dentes de cavalo.

  — N?o é veneno. Nem infec??o. Mas também n?o é coisa que se aprende a tratar com plantas e benzedeira. Se eu soubesse curar isso, você acha que estaria preso nesse curral elevado, com gente que acredita que febre é puni??o divina?

  Lúcia mordeu o próprio lábio. Tinha argumentos, mas nenhum que resolvesse o problema — ent?o guardou todos.

  O homem se levantou com um estalo discreto nos joelhos, limpando as m?os na túnica, como se aquilo fosse resolver a imundície.

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  — Posso tentar manter ela viva. Talvez preparar algum analgésico pra levar com vocês. Mas se ela come?ar a gritar de novo... vocês somem. Gente que grita chama problema, e problema aqui já temos demais.

  Lúcia assentiu. N?o porque concordava. Era mais um reflexo, como piscar. A verdade é que n?o tinham op??o.

  Lá fora, Garm vigiava, imóvel. Os moradores da vila o olhavam como se ele fosse um poste cercado de minas terrestres. N?o era reverência. Era sobrevivência básica: ninguém quer ser o idiota que cutuca o lobo de três metros com cara de poucos amigos.

  — N?o tem realmente nada que você possa fazer?

  A pergunta saiu mais mansa do que queria, e menos esperan?osa do que esperava.

  O médico a encarou. Ou melhor, levantou os olhos com uma lentid?o que deixava dúvidas se ele tinha entendido ou apenas se cansado do teto. Cruzou os bra?os, voltou a encostar-se num peda?o de parede que parecia prestes a se desprender, e permaneceu assim. Pensativo.

  Por um instante, Lúcia achou que ele talvez soubesse algo. Era o tipo de esperan?a que nasce do desespero, aquela fagulha inconveniente que insiste em acender mesmo quando você já aceitou o breu.

  Ele finalmente suspirou.

  — N?o.

  A pausa foi longa o suficiente para ela pensar em gritar. Mas ele continuou.

  — N?o aqui.

  Lúcia franziu a testa.

  — Como assim, “n?o aqui”? O que falta? Equipamento? Remédio? Moral?

  O homem ergueu uma sobrancelha, como se tentasse decidir se valia a pena responder com ironia. Optou pelo caminho do meio.

  — Falta estrutura, conhecimento, talvez sorte. Aqui é como te disse, posso mantê-la estável... por uns dias. Talvez uma semana. Mas é só. Eu t? lidando com algo que nem sei nomear. Isso aí — apontou para Eva com o queixo. — é uma bomba-relógio. E eu n?o sou o tipo de cara que sabe qual fio cortar.

  — E quem sabe?

  Ele hesitou. N?o por medo. Era mais um inc?modo existencial de ter que dar más notícias com palavras completas.

  — A única coisa que ouvi nos últimos anos sobre tecnologia médica de verdade... está na capital.

  Lúcia piscou devagar, como se o cérebro precisasse de tempo extra para processar o que, até poucos segundos atrás, era uma palavra sem fun??o real no vocabulário dela.

  — A... capital?

  — Sim, garota. A capital de antes, do mundo antigo. S?o Paulo.

  Ele disse isso com a naturalidade de quem fala “tem p?o na cozinha”, mas a frase ficou pairando no ar por alguns segundos a mais do que o necessário, como se estivesse tentando encontrar uma forma mais apropriada de se acomodar no ambiente. N?o encontrou.

  Silêncio.

  Um espa?o entre ideias onde ninguém sabia exatamente o que vinha depois. Lúcia co?ou o bra?o, hesitante. O gesto n?o ajudou muito, mas também n?o piorou a situa??o, o que já era lucro. Parte dela queria agradecer por finalmente ter um norte. Outra parte queria enfiar a cabe?a na terra até esquecer que n?o tinha ideia do que era esse norte.

  O médico deu um passo, puxou uma das cadeiras velhas e sentou-se, deixando a madeira ranger de forma pouco confiável. O móvel rangeu em protesto, mas aguentou. Ele apoiou os cotovelos nos joelhos, entrela?ou os dedos, e ficou ali por um momento, olhando para um ponto indefinido no ch?o como se esperasse que alguma epifania subisse das tábuas.

  — Aquele seu lobo… — come?ou, sem levantar o olhar — o qu?o forte ele é?

  Lúcia franziu a testa, mais confusa do que preocupada.

  — O Garm? Isso depende. Pra que exatamente?

  O homem balan?ou a cabe?a levemente, como quem ainda ajustava uma ideia na própria mente. A boca se abriu e fechou duas vezes, sem som, até que finalmente cedeu.

  — Ele… aguenta três pessoas?

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  Ficaremos sem imagens por um tempo, mas logo volto a postar!

  Estou meio sem tempo e n?o est?o saindo resultados bons...

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