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Capítulo 3: Poesia noturna.

  Eram cinco da manh? e o céu ainda dormia quando Sena desceu de um carro em uma parte desativada do porto de Crownia. O silêncio era quebrado apenas pelo som suave da maré batendo contra os pilares. Ela agradeceu ao motorista com um aceno breve e seguiu pelo caminho de concreto rachado.

  Seus saltos faziam um som seco e ritmado a cada passo, ressoando entre os contêineres como um relógio marcando o início de algo inevitável, até se aproximar de um depósito abandonado.

  Ali, encostado contra uma das paredes enferrujadas, Sebastian fumava um cigarro com calma. Seu olhar estava perdido entre os contêineres, atento ao silêncio da madrugada. A brasa vermelha pulsava em intervalos regulares, iluminando brevemente seu rosto marcado pelas noites em claro. Com um leve movimento dos dedos, ele levou o cigarro à boca, tragou com lentid?o e soltou a fuma?a para o alto, como se desenhasse pensamentos que preferia n?o dizer em voz alta. A brasa era a única luz além dos postes distantes.

  — N?o achei que me chamaria t?o cedo. — falou, estendendo a m?o para Sebastian.

  — Algumas coisas se moveram mais rápido do que eu esperava. — respondeu Sebastian entregando-lhe um cigarro e o acendendo.

  — Mais inesperadas que o acidente? — Sena sorriu, mas ele n?o retribuiu.

  — O rei apareceu.

  Ela o encarou por um momento.

  — E o que espera que eu fa?a?

  — N?o sei. Você é quem vai me dizer. — respondeu Sebastian. — O que você vai fazer?

  Sena soltou uma breve risada nasal.

  — Isso depende. Quero olhar nos olhos dele primeiro.

  Nesse momento, passos se aproximaram por trás das pilhas de contêineres. Mirio surgiu com as m?os nos bolsos, o capuz abaixado.

  — Mais cedo ou mais tarde, vocês v?o acabar se encontrando. — disse ele.

  Sena voltou-se para ele, erguendo uma sobrancelha.

  — Mirio...

  — é bom te ver, rainha. — disse ele, com um meio sorriso.

  — Digo o mesmo. Por enquanto. — ela respondeu, mantendo o tom cordial.

  Mirio se aproximou e olhou para Sebastian.

  — Bom trabalho no Royal Café.

  — As garantias da Rita pareceram sinceras. — disse Sebastian. — Sobre proteger o novo rei. E garantir que quem quiser se retirar do jogo esteja seguro.

  — Por enquanto, acredito nisso também. — respondeu Mirio. — Mas n?o seria otimista a ponto de aceitar essa saída.

  Sena e Sebastian se entreolharam, como se trocassem um raciocínio inteiro em silêncio.

  — Faz sentido esconder o novo rei do mundo por enquanto. — disse Sena. — Mas mesmo assim, Sebastian normalmente já teria me contado quem é.

  Ela expirou a fuma?a com calma e apertou os olhos, avaliando em silêncio. Deu mais um trago no cigarro, o gesto pausado e mecanico, enquanto seus olhos estreitavam-se como se perseguissem a lógica oculta por trás das palavras n?o ditas de Sebastian. A fuma?a escapou de seus lábios em espiral, subindo lentamente no ar frio da manh?.

  — Está com medo de alguém por perto? Duvido. Se Crow verificou o local, n?o é isso. Tem medo da viúva usar os recursos do grupo Clover pra agir contra ele? Também n?o. Você sabe que eu impediria, e legalmente a heran?a poderia ser transferida.

  Ela fez uma pausa, olhando para o vazio por um instante.

  — Isso só deixa uma hipótese plausível: o novo rei n?o sabe. Alguém totalmente alheio ao jogo.

  Mirio sorriu.

  — é um alívio ter você do nosso lado.

  Num piscar de olhos, Sena se moveu. O ar pareceu congelar quando um brilho azul cortou a escurid?o. Em menos de um segundo, ela estava atrás de Mirio, uma lamina encostada à sua garganta. O cigarro que segurava caiu, rolando até os pés de Sebastian.

  — Eu ainda n?o decidi se você está do meu lado. — disse ela.

  Mirio ergueu as m?os devagar, rendido.

  — Você nunca decepciona.

  Sena se afastou, e a lamina desapareceu deslizando para dentro da manga do blazer.

  — Pare de brincar. Como pretende explicar ao novo rei o papel dele? Como vai convencê-lo a entrar nesse jogo?

  — Já estou cuidando disso. — respondeu Mirio. — Acredite, as pe?as est?o se movendo.

  Sena estreitou os olhos, desconfiada.

  — Movendo para onde, exatamente? — murmurou, mais para si do que para os outros.

  The author's tale has been misappropriated; report any instances of this story on Amazon.

  Mirio se virou.

  — Preciso ir. Algo surgiu na fac??o de ouros.

  Sebastian observou, e por um instante, ele e Sena trocaram um olhar silencioso.

  Mirio caminhou até um carro velho estacionado dentro do depósito e entrou.

  — Mas temos vantagem: nosso corvo já sabe onde pousar. — disse ele, antes de fechar a porta.

  Sena se aproximou de Sebastian.

  — Você confia nele?

  — N?o. — respondeu. — Mas no momento, parece ser a única alternativa.

  Ele olhou para as gaivotas no outro lado do cais.

  — Além disso... ele tem o melhor informante da cidade ao lado dele.

  Sena olhou para o grupo de aves e soltou um suspiro.

  — Ent?o é isso... — murmurou, ainda olhando as aves, como se confirmasse algo que preferia n?o admitir.

  às cinco da manh?, Rita já estava de pé. Pegou uma lata de café gelado em uma das máquinas do QG, e enquanto caminhava pelos corredores silenciosos, notou que o ambiente ainda estava quase vazio — apenas alguns oficiais sonolentos, dispersos como sombras, quebrando o silêncio com passos arrastados e bocejos abafados. Após tomar os primeiros goles do café, seguiu para sua rotina de treinos.

  Depois do treino de cárdio e combate, foi direto para os vestiários. Entrou sob o chuveiro com a água ainda fria, deixando que a corrente lavasse o suor acumulado e aliviasse a tens?o dos músculos. Passou o sabonete devagar pelos bra?os e pernas, sentindo o corpo retomar o ritmo da manh?.

  Ao terminar o banho, seguiu pelos corredores frios do QG, as botas ecoando discretamente no piso encerado. Passou por uma parede de janelas que deixava entrar a luz tímida da manh?, e por mais alguns oficiais que conversavam em voz baixa, ainda em ritmo de despertar. No estacionamento subterraneo, o cheiro de óleo e metal dominava o ar. Caminhou até sua moto, uma máquina preta e bem cuidada, destravou com um movimento preciso, colocou o capacete e girou a chave. O motor rugiu suavemente.

  Com o dia clareando, Crownia parecia outra — sem os LEDs, o concreto e o vidro mostravam sua verdadeira face. Depois de cruzar a zona urbana, come?ou a subir pela estrada que levava às montanhas do norte.

  O vento era frio, cortando entre as árvores. No alto da montanha, envolto por floresta densa, erguia-se o palácio real — uma fus?o entre o clássico e o moderno. Rita parou diante do port?o. Levantou a viseira do capacete. A autoriza??o foi imediata.

  Ela seguiu pela alameda principal, contornando uma fonte imensa. Ao estacionar, retirou o capacete. Morgan já a aguardava.

  — Comandante. — cumprimentou ele.

  — Ministro. — devolveu Rita, seguindo com ele.

  Caminharam pelos corredores amplos e iluminados, decorados com arte de vários cantos do mundo. Pararam diante de uma porta dupla. Morgan bateu.

  — Entre. — veio a voz.

  Dentro, o escritório de Raymond era amplo, ornamentado com pe?as exóticas. Atrás da mesa, uma imensa janela aberta mostrava o verde da floresta e, ao fundo, o mar refletindo os primeiros raios dourados da manh?.

  Raymond falava ao telefone. Usava um terno azul sob medida. A barba e o cabelo escuros estavam perfeitamente aparados. Em uma m?o, segurava o telefone; na outra, um charuto aceso. Uma corrente de relógio de bolso escapava discretamente do colete.

  Morgan e Rita aguardaram até ele desligar.

  Rita prestou continência.

  — Bom dia, comandante. Perd?o pelo inc?modo t?o cedo. — disse Raymond.

  — N?o há inc?modo, príncipe. — respondeu Rita.

  Raymond olhou para Morgan.

  — Deixe-nos.

  Morgan saiu, fechando a porta. Raymond acenou para que Rita ficasse à vontade. Ela desfez a continência.

  — Como foi no Café Royal?

  — Como esperado, Sebastian foi cordial. E o crepe... surpreendentemente bom.

  — Deveria provar qualquer dia. — comentou Raymond, sorrindo de lado. — Temos um novo rei?

  — Temos. Como imaginamos, é alguém de fora do jogo.

  — E quanto ao plano de a??o?

  — Já comecei a mapear a rotina dela. Pretendo usar apenas cartas do Sete ao Dez para patrulhas nas áreas que ela costuma frequentar. Todas do seu baralho, senhor.

  Raymond assentiu.

  — Um bom plano. Evite grampos. Nosso informante em Copas disse que eles têm um número que consegue burlar redes.

  — Ent?o eles talvez já saibam?

  — é possível. Mas n?o vamos agir ainda.

  — Por quê?

  — Alguém de Paus prometeu lidar com isso discretamente. Se falhar, Maria será for?ada a agir. Se ela se expuser, teremos justificativa para contra-atacar.

  — E Ouros?

  — Esse é o segundo motivo da sua vinda. Ontem à noite, alguém importante de lá prometeu n?o se meter... em troca de um favor.

  — Gaspar nem se deu ao trabalho de ligar pessoalmente? — disse Rita com a voz carregada de uma raiva contida.

  Raymond ignorou o sentimento da comandante e seguiu com a resposta:

  — Me pediram acesso às cameras do túnel da baixa.

  — Como eles sabem dessas cameras? Ainda n?o foram divulgadas...

  — Gaspar é o rei mais rico... e tem muita gente na folha. — disse Raymond, tragando o charuto. — Fitz vai encontrar você mais tarde na central de inteligência.

  — Um ás? Para isso?

  Raymond tragou mais uma vez antes de responder:

  — Quem me ligou foi Sérvulo.

  Rita sentiu um arrepio imediato, como se o nome tivesse o peso de uma amea?a velada, e assentiu lentamente.

  — Obrigada pela prote??o, senhor.

  Já se aproximava das dezoito horas, e Rita estava visivelmente cansada pelo dia cheio. Fitz havia chegado à central de inteligência há algum tempo, e os dois fumavam juntos do lado de fora do prédio. O sol poente tingia os prédios de tons dourados e alaranjados, enquanto a cidade seguia em ritmo acelerado.

  — N?o vejo a hora de ir embora e tomar um banho. — disse Rita, puxando o cigarro com for?a.

  — Eu gostaria de poder ir junto. — respondeu Fitz com um sorriso atrevido.

  — Sua fun??o é me proteger, n?o me atacar. — retrucou Rita, sorrindo de volta.

  — N?o dessa vez. — disse, piscando com leve provoca??o.

  Ambos riram, soltando a fuma?a em sincronia.

  Os minutos passaram tranquilos — até o som ritmado de passos pesados cortar o ambiente. Um homem loiro de cabelos desgrenhados surgiu na cal?ada, aproximando-se com passos pesados e relaxados, como se já fosse dono do espa?o. Quando chegou à entrada, Fitz e Rita o observaram com aten??o.

  — Ritinha. — cumprimentou Sérvulo, ignorando a presen?a de Fitz.

  Fitz permaneceu imóvel, mas seus olhos acompanharam cada passo do recém-chegado.

  Rita apenas assentiu, mantendo a express?o controlada. Do bolso, tirou um token e estendeu para Sérvulo. Ele pegou, mas em vez de simplesmente aceitar, segurou a m?o dela com firmeza, passando o polegar devagar sobre os dedos dela, num gesto intrusivo e silencioso que a fez enrijecer os ombros imediatamente.

  Rita tentou puxar o bra?o, mas ele n?o soltou.

  Fitz avan?ou e segurou o pulso de Sérvulo.

  — Quer tanto assim perder o bra?o? — disse com firmeza.

  Sérvulo abriu um largo sorriso.

  — Que tal uma aposta? O que cai primeiro: meu bra?o… ou sua cabe?a?

  Fitz apertou o pulso de Sérvulo com for?a crescente, os músculos tensos sob a manga da camisa. O sorriso de Sérvulo aumentou, como se estivesse se divertindo. Rita, aflita, olhou ao redor.

  — Gaspar vai ficar furioso se você causar uma como??o pública. — disse ela, em tom mais baixo.

  Sérvulo notou que algumas pessoas na rua já olhavam a cena. Soltou o próprio bra?o da pegada de Fitz, colocou o token no bolso e se virou sem dizer mais nada.

  Enquanto ele se afastava, Rita sentiu o corpo relaxar aos poucos, como se só ent?o pudesse respirar. Quando ele sumiu da vista, ela suspirou fundo.

  — Obrigada. — disse a Fitz.

  — N?o foi nada. — respondeu ele, olhando para o parque em frente à central.

  — Essa semana está puxada... mas eu te ligo quando estiver livre. — disse Rita, com um sorriso cansado.

  — Eu entendo. — respondeu Fitz, com um aceno breve e olhar sereno.

  Fitz se despediu com um beijo leve na bochecha. Rita o observou por um momento enquanto ele se afastava, depois puxou uma última tragada longa e silenciosa antes de apagar o cigarro com a ponta da bota. A noite já tomava o céu, e o ritmo da cidade parecia ecoar de um lugar onde ela já n?o estava.

  Já era por volta das 22 quando Sylvia chegou ao Royal Café. O movimento havia diminuído, e o interior do estabelecimento estava calmo, com poucas mesas ocupadas e uma música instrumental suave preenchendo o ar. Ela se sentou perto da vitrine, abrindo um livro de poesias enquanto esperava Camila terminar o turno.

  Lia em silêncio, mergulhada nos versos, quando uma voz tranquila chamou sua aten??o:

  — Esse é bom?

  Sylvia levantou os olhos e se deparou com um belo homem. Tinha um rosto gentil e o cabelo escuro, levemente bagun?ado. Um calor inesperado subiu pelo rosto dela.

  — Ah... é sim. é uma coletanea. Tem uns poemas bem intensos aqui. — respondeu, tentando disfar?ar o rubor.

  — Gosto de poesia. — disse ele, sorrindo. — Posso saber o nome da leitora apaixonada?

  — Sylvia. — respondeu, fechando um pouco o livro.

  — Vince. — disse ele, estendendo a m?o brevemente.

  Antes que pudessem continuar a conversa, Camila apareceu ao lado delas, tirando o avental e ajeitando os cabelos soltos.

  — Vamos?

  Foi ent?o que notou Vince ali.

  — Boa noite. — disse, simpática.

  — Boa noite. — respondeu ele, olhando brevemente para Camila antes de voltar os olhos para Sylvia. — Gostei de conversar com você. Posso pegar seu contato?

  Sylvia hesitou por um instante, mas Camila já havia se antecipado. Pegou o celular do rapaz, digitou o número da amiga e devolveu com um sorriso travesso.

  — Pronto. Agora n?o tem como escapar.

  Sylvia saiu do café com o rosto em chamas, e Camila fez um joinha divertido para Vince antes de sair atrás dela.

  As duas caminharam pela rua iluminada, onde as vitrines refletiam o brilho das lampadas e anúncios coloridos ainda decoravam os prédios. Camila soltou um assovio leve.

  — Ele é um gato! Vai sair com ele?

  — N?o sei… talvez. Se a conversa fluir. — respondeu Sylvia, ainda corada.

  Chegando à entrada do metr?, as duas se despediram. Camila desejou boa sorte com o “boy” e Sylvia respondeu com um sorriso contido.

  No alto de um dos prédios próximos, entre a casa de máquinas e as sombras dos outdoors, Mirio observava a rua. Um corvo empoleirado em seu ombro grasnou baixo, e ele acompanhou com os olhos o mesmo rapaz que havia acabado de pegar o número de Sylvia e agora falava ao celular próximo ao café.

  Mirio estreitou os olhos, escutando o grasnado metálico do corvo ao seu lado.

  — Sérvulo esteve na central de inteligência? — murmurou.

  O corvo grasnou mais uma vez, e Mirio sorriu de lado.

  — Isso confirma o boato...

  Ele ent?o olhou para o horizonte escuro da cidade.

  — Espalhe pássaros onde Gaspar guarda coisas de valor, todos os que conhecer.

  Fitz e Rita.

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