Todos esperavam gritos. Afinal, um ataque pirata costumava vir com certa pirotecnia auditiva. Mas naquele caso, apenas o silêncio acompanhou a primeira e única gota de sangue. Um silêncio inc?modo, quase constrangedor, como o silêncio presente em um elevador repleto de desconhecidos.
— Eu n?o vou fazer isso... — disse Alex, baixando a lamina que estava encostada no pesco?o de um homem magro, semi-desmaiado e claramente mais perto do mundo dos mortos do que dos vivos. Quando a morte imediata se afastou, ele n?o reagiu. N?o agradeceu, n?o chorou, n?o fugiu. Só piscou lentamente, confuso.
A faca voltou para sua bainha, com a relutancia de quem guarda um presente indesejado. O guerreiro n?o era f? da arma. Muito menos da miss?o. Entrar, matar, roubar, sair. Parecia simples no papel. Mas ali, olhando para um punhado de comerciantes em farrapos, aquilo n?o tinha gosto de vitória.
Se virou, olhos faiscando, em dire??o à figura que o observava com um sorriso que n?o era exatamente reconfortante. A capit?, equilibrada entre os dois navios como quem contempla a própria obra de arte — ou uma explos?o prestes a acontecer —, estava entretida.
— N?o vai? — perguntou Ana, a voz doce com uma borda de caco de vidro.
— N?o. Essas pessoas n?o merecem um fim assim.
O sorriso dela se alargou, mas n?o de aprova??o. Seus olhos se estreitaram levemente, e por um breve instante, Alex teve a impress?o de que ela estava calculando algo — n?o sobre o inimigo, mas sobre ele. Ela saltou para a fragata com leveza ensaiada, como se o convés fosse palco e o salto, parte da coreografia. Ao aterrissar, n?o disse nada. Só andou. Devagar, direto, e ergueu o bra?o.
O vice-capit?o sabia o que viria em seguida. Sabia também o que significava decepcioná-la — n?o em termos de puni??o, mas do tipo de desprezo que Ana conseguia aplicar com um único olhar. Ainda assim, manteve-se firme.
— Gosto de você, Alex. — A m?o apoiada no ombro do homem efervescente come?ou a trazer um sutil, e talvez um pouco repugnante, cheiro de carne queimada. A press?o a princípio parecia cordial, gentil, até, mas logo sua pele afundou com o aperto. Alex resistiu ao impulso de recuar. Já era tarde demais para isso. — Espero que se responsabilize por suas escolhas.
— Farei isso.
Dando um tapinha em seu rosto, um gesto quase maternal se n?o fosse o contexto, ela voltou para o Collectio. Subiu devagar, sem pressa, sem se dignar a olhar para trás, sumindo em sua cabine com naturalidade.
Alex ficou ali, parado. Respirou fundo, só ent?o percebendo que estava prendendo o ar há minutos;
— Algo n?o tá certo com essa mulher — disse uma voz feminina às suas costas.
Madame estava ali com os bra?os cruzados e a arma apoiada na lateral do quadril, como se qualquer coisa pudesse ser resolvida com um suspiro e um tiro bem-dado — embora, no fundo, n?o fosse f? de tiroteios desnecessários. Seus olhos analisavam Ana à distancia com um tipo de express?o indescritível.
— Você devia falar com ela — completou.
— N?o vai adiantar — respondeu Alex. — Eu conhe?o aquele olhar. O problema é que ela tá com fome.
— Com… fome?
O vice-capit?o abriu a boca para responder, mas hesitou. Era um pensamento inc?modo e talvez nem fosse correto, ent?o desistiu de explicar. Quando o som dos v?mitos — ainda parte da consequência previsível da falta de mana no ar — cessou, ele se aproximou do capit?o do navio adversário.
O homem n?o era velho o suficiente para ser ignorado, nem jovem o suficiente para n?o estar cansado. Os cabelos grisalhos lhe davam um certo ar de sabedoria, mas o joelho fincado no convés tirava parte da autoridade. Mesmo assim, o olhar seguia firme. N?o desafiador, mas orgulhoso — do tipo que já viu sua cota de derrotas e aprendeu a conviver com elas.
— Você. Como se chama?
— Ignácio — respondeu o homem, levantando o rosto. — Capit?o Ignácio, da Aurora…
— N?o se preocupe com títulos, n?o conhe?o nada por aqui. — cortou Alex, abaixando-se sobre um joelho e estendendo um peda?o de couro. — Levante-se, senhor.
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Ignácio riu de forma hesitante, mas aceitou a ajuda. Havia algo no sorriso de Alex, algo entre exaust?o e gentileza, que o impedia de recusar.
— Vou ser franco com você — disse Alex, enquanto o ajudava a se firmar. — O quanto eu vou conseguir te manter vivo a partir de agora depende exclusivamente do qu?o útil você é.
— útil? — Ignácio tossiu, tentando organizar os pensamentos. — N?o s?o só saqueadores? Peguem o que quiserem e nos deixem de uma vez.
Alex bufou. Um som simples, direto, carregado com aquela paciência curta e já muito desgastada.
— N?o recomendo que fale assim na frente da capit? Ana, Ignácio.
— Aquela jovem n?o merece tal título. Um capit?o respeita o código de conduta Mare Euphoria. Temos princípios! — Cuspiu no ch?o, mirando em nada e atingindo apenas o próprio orgulho. — N?o viram a merda da bandeira branca?
— Já disse que n?o somos daqui, droga. — Alex recuou dois passos e se espregui?ou com a naturalidade de quem está tentando convencer os próprios músculos de que vale a pena continuar. — N?o me tira a paciência, homem. Isso é só um conselho. Quer ignorar? ótimo. Só espero que esteja confortável com a ideia de ver todo mundo aqui morrer.
Ignácio apertou os olhos, mas ficou em silêncio. Talvez ponderando se era mais sensato manter a postura ou os dentes.
— Vamos ao que interessa. Tudo nesse navio, de onde meus pés tocam pra baixo, pertence a nós. Suas vidas também. Pelo menos por enquanto. Entendido?
— Sim, seu merdinha.
— ótimo. Tem alguém lá embaixo?
— N?o no momento.
Ouvindo a resposta, o vice-capit?o acenou para uma parcela dos tripulantes do Collectio que estavam a bordo. Já haviam alinhado com antecedência, ent?o sem hesita??o, baixaram para o depósito do navio.
— Quanto tempo até Mare Euphoria?
— Algumas horas. Com esse vento, talvez menos.
— Ana vai gostar de saber disso. Você fica conosco. Vai ser nosso guia. Seus homens... bem, eles v?o esperar nas celas. — Alex sorriu. Outro gesto, e a ordem se espalhou.
Os tripulantes capturados foram levados sem resistência, embora um ou outro tenha hesitado em se afastar de suas armas, apesar de já estarem no ch?o. N?o que tal hesita??o durasse muito tempo, sabiam que estavam vivos por cortesia, ent?o o melhor a se fazer nessa situa??o era se deixar levar.
— Madame, se importa de avisar que já está tudo certo? Preciso saber o que fazer agora.
A mulher, encostada na amurada como quem observa um teatro ruim, levantou uma sobrancelha.
— Ela ainda está brincando de esconder os planos?
— Na verdade, acho que ela n?o tem porcaria de plano nenhum. Só tá improvisando com estilo.
— Discordo. Ela passou horas revisando aqueles mapas e papéis mofados. N?o finge t?o bem assim.
Alex deu de ombros, os olhos vagando por um momento em dire??o à cabine fechada antes de suspirar profundamente.
— Já n?o sei de mais nada…
Madame o observou em silêncio. Para ela, Alex sempre teve esse ar de alguém que carregava mais do que devia — e n?o por bravura, nem por nobreza, mas por teimosia mesmo. Era jovem, tecnicamente, mas sempre que lia sua mana podia ver que ela gritava outra coisa. Era uma mistura desorganizada, tensa, desconfortável de sentir. Uma bagun?a que dizia muito sem precisar de palavras. Quase um pedido de ajuda. Ou, no mínimo, de pausa.
No entanto, a velha taverneira escolheu n?o responder. N?o por frieza. Apenas... por sabedoria prática. Já tinha vivido o bastante para saber que nem todo mundo quer ser salvo. às vezes, s?o as rachaduras que impedem certas pessoas de desmoronar de vez.
Girou a al?a da arma presa à coxa, ajeitando-a com um gesto automático, quase reconfortante. Seu olhar se perdeu por um instante no horizonte, n?o em busca de inimigos, mas de qualquer coisa que n?o exigisse envolvimento emocional. Havia embarcado para beber cerveja e aproveitar uma boa aventura, com sangue só o suficiente para manter o tédio afastado. N?o estava ali para mergulhar de cabe?a na insanidade que cercava Ana — e, por extens?o, todo o resto.
Caso se envolvesse demais, deixaria de ser espectadora. E espectadora era o papel que ela havia decidido assumir.
Claro que n?o era fácil. Aqueles jovens a lembravam demais do passado. Das escolhas erradas que pareciam certas. Da liberdade que vinha sempre acompanhada de dor. Ah, uma bela nostalgia... do tipo que dá gosto lembrar — e muito mais gosto em manter enterrada.
Enfim, dessa vez ela cederia. Falaria com a capit?.
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Ficaremos sem imagens por um tempo, mas logo volto a postar!
Estou meio sem tempo e n?o est?o saindo resultados bons...