home

search

Capítulo 201 - Delírio

  — Merda!

  A palavra escapou com for?a, como se tentasse sair há horas e só agora tivesse encontrado uma brecha. Um segundo depois, uma ta?a de vidro se espatifou contra a parede, encerrando qualquer chance de um momento silencioso. O estalo ecoou pela cabine, multiplicado em mil pedacinhos que se espalharam como pequenos espi?es indiscretos.

  Ana apoiava ambas as m?os na mesa, os dedos cravados na madeira como se pudessem afundar até o outro lado do mundo. A superfície, resistente até ali, come?ava a ceder sob a press?o constante. Sua respira??o n?o era apenas ofegante — era desequilibrada, cortada, como se cada inspira??o viesse com um pre?o alto demais. Os olhos semicerrados tremiam, e a boca se mantinha cerrada por pura obstina??o, engolindo palavr?es como se fossem pedras.

  “Merda, merda, merda...”

  Outra ta?a voou, desta vez contra uma estante vazia. O som da colis?o foi seguido por um estalo seco, e alguns estilha?os voltaram em sua dire??o. Cortaram-lhe a bochecha e o pesco?o como pequenas puni??es insolentes. Ela sequer piscou.

  Matar.

  Matar.

  Matar.

  A voz dentro dela n?o gritava — ela sussurrava. Mas fazia isso incessantemente, como goteira em noite longa. N?o cedia. N?o deixava espa?o para mais nada. Podia tentar se concentrar, respirar, contar de trás pra frente, recitar mentalmente os nomes de todos os animais que conhecia em ordem alfabética... nada silenciava aquilo.

  A ta?a n?o foi o suficiente. Com raiva, virou a própria estante em dire??o ao ch?o. A cadeira seguiu. O impacto a ajudou a se acalmar, e Ana passou a pressionar as têmporas com for?a, os dedos afundando nas laterais da cabe?a como se pudesse apertar os pensamentos para fora.

  Era a mana. Ou a ausência dela. A carência estava atingindo níveis críticos, como fome depois de dias no deserto — mas uma fome específica. Uma que n?o aceitava p?o, só sangue. E Ana a reconhecia bem. Tinha sentido isso antes. Com a Colecionadora, talvez. Ou, com mais certeza, na chacina dos insectoides no outono do ano passado.

  Queria fazer os marujos sangrarem. Queria fazer cada um deles pagar por simplesmente estarem ali. N?o existia raz?o real, a vontade simplesmente a estava consumindo.

  Mas aí veio Alex.

  Com um único gesto de recusa, a arrancou da beira do colapso. Ana queria socá-lo. De verdade. Com for?a. Mas, em vez disso, só conseguiu lembrar do olhar que ele lan?ou — um olhar que n?o julgava, n?o suplicava... apenas entendia. E aquilo foi o bastante para que a vontade de matar perdesse momentaneamente o foco.

  — Aquele idiota merece uma recompensa... — resmungou, sem muita convic??o.

  O som atrás dela foi discreto, quase gentil. Um arrastar leve, como se o silêncio estivesse dando espa?o para alguém entrar. Ana se virou bruscamente, os olhos ainda dilatados, o corpo tenso. Por um segundo, parecia pronta para atacar.

  — O que aconteceu aqui, mulher?

  Madame estava encostada na porta, empurrando cacos com a biqueira da bota, reunindo-os num canto com a delicadeza de quem recolhe memórias mal resolvidas. O rosto n?o trazia julgamento, só uma curiosidade cética.

  — As coisas est?o caminhando rápido lá fora. Logo v?o esvaziar o barco.

  Ana fechou os olhos. Respirou fundo, depois outra vez, como se tentando empacotar a loucura e jogar por baixo do tapete. Endireitou-se. N?o podia se mostrar vulnerável, nem mesmo para Madame.

  — Obrigada pelo aviso. Sem baixas?

  — Sim. A maioria nem conseguiu se levantar.

  — Isso é... bom. Sim, muito bom.

  Ela já estava indo em dire??o à porta quando Madame se colocou no caminho. N?o foi agressiva, nem teatral. Apenas firme. E o olhar, sempre t?o afável, agora trazia algo mais denso. Um alerta velado.

  The tale has been illicitly lifted; should you spot it on Amazon, report the violation.

  — Ana, se algo estiver acontecendo, preciso que me fale.

  A capit? hesitou. Apenas por um segundo. Mas o silêncio que pairou foi mais eloquente que qualquer resposta. Madame manteve a postura, sustentando o olhar.

  — Vamos. Eu n?o te entreguei nem quando achei que era uma sombra há anos. Isso me rende ao menos um pouco de confian?a, n?o?

  Ana a encarou. De perto. Cinco segundos de uma intensidade que poucos aguentariam. Madame, para sua surpresa, recuou meio passo. E odiou ter feito isso.

  — Eu conhe?o você. E com certeza n?o é o tipo de pessoa que quebra uma sala dessas por tédio — murmurou, apontando para a bagun?a ao redor.

  Lenta, quase com relutancia, Ana ergueu a m?o direita. Em um gesto único, puxou a luva que cobria a pele até ent?o escondida.

  Madame piscou duas vezes. N?o por descren?a, mas porque precisava de um segundo extra para digerir a imagem à sua frente.

  A m?o de Ana n?o estava apenas estranha. Estava... errada de um jeito sofisticado. Os dedos, negros como se carbonizados, n?o tinham aparência doentia — havia até uma elegancia inquietante neles. Mas logo abaixo das articula??es, o grotesco tomava conta: uma costura viva de flores e carne, coloridas como um jardim repleto de divers?o mórbida. Só que a maioria das flores já havia desistido. Estavam murchas, cabisbaixas. Somente as negras permaneciam intactas, quase orgulhosas. Como se soubessem que estavam ganhando.

  Ana olhou para a própria m?o e bufou alto.

  — A mana… n?o, a falta de mana… a mana reversa… sombras… matar, sabe?

  Madame apenas assentiu. N?o por entender, mas porque n?o queria interromper o fluxo de delírio poético que a capit? parecia estar entoando.

  Com calma, segurou o bra?o da mulher e o abaixou.

  — N?o fa?o ideia do que você tá falando. Mas antes de ir lá fora, acho que precisa — com urgência — de uma cerveja.

  Ana poderia ter argumentado, feito uma analogia grandiosa sobre guerra interna, ou apenas rosnado. Mas em vez disso, sorriu. Talvez, porque pela primeira vez em horas, a proposta parecia razoável. Ou porque estava cansada demais para contrariar.

  Com um gesto rápido das duas m?os, indicou que a taverneira fosse na frente, e as duas saíram sem alarde. A poucos lances dali, já se sentavam nos bancos altos do balc?o improvisado da embarca??o

  — Preciso de mana.

  As palavras saíram separadas, como se precisassem passar por um filtro antes de escapar pela garganta. Madame apenas observou, esperando que a explica??o viesse com o segundo gole.

  — Está t?o ruim assim só pela falta de mana? — ela perguntou, genuinamente surpresa. — Isso sim é novidade.

  — N?o é pela falta — Ana respondeu, apoiando o copo com mais for?a do que deveria. — é pelo excesso da outra.

  Madame arqueou uma sobrancelha. O tipo de arqueio que dizia: “Vai ter que ser mais clara que isso, florzinha.”

  — A energia das Sombras?

  — Isso. A mana reversa.

  — E ela é t?o ruim assim?

  — Ruim? Claro que n?o.

  O sorriso que veio depois era o tipo que deixaria um inquisidor inquieto. Ana bateu com o punho no balc?o. Uma rachadura fina se formou, correndo de uma extremidade à outra como uma linha de pensamento pessimista. Madame, por instinto, afastou o copo.

  — Ela é maravilhosa — continuou Ana, agora com voz baixa, quase terna. — T?o maravilhosa que vai acabar comigo.

  Passou os dedos — ainda sem luva — pelas flores em sua pele, com um carinho que lembrava alguém acariciando o próprio tumor. N?o era amor. Era familiaridade.

  — Collectio vai me transformar em algo que eu n?o deveria ser.

  Madame tamborilou os dedos no balc?o. Um de cada vez. Depois suspirou, serviu outro copo para a rainha mercenária e apoiou o cotovelo no balc?o.

  — é por isso que quer o navio daqueles caras lá fora?

  Ana balan?ou a cabe?a com lentid?o.

  — N?o. Eu n?o posso sair daqui.

  — E tem escolha?

  — Você quem me diz — respondeu, soltando um pequeno pingente de metal que prendia uma mecha do cabelo. O objeto tilintou levemente sobre o balc?o. — Vai dirigir ele por mim?

  Madame afastou a m?o dela, como quem afasta um prato exótico demais pra confiar.

  — N?o sou boa com essas coisas. Mas... e aquele cara?

  Ana virou o rosto na dire??o apontada por um leve aceno de queixo.

  — O Luiz?

  Demorou um segundo para focar no vulto sentado à mesa. Um vulto com a postura de quem n?o sabia exatamente onde deveria estar, mas tinha certeza de que n?o era ali.

  — Ei, vagabundo! — Ana levantou a voz, mas sem levantar do banco. — Você n?o devia estar lá em cima ajudando?

  — N?o perco tempo com coisas sem sentido. O bruta-montes já n?o tá lá resolvendo tudo?

  A resposta de Luiz veio com o desanimo meticulosamente calculado de quem vem se especializando em fugir de responsabilidades desde a adolescência. Ana voltou a rir. Era um riso seco, quase protocolar, mas sincero na essência. Estava claro: ninguém estava obedecendo porra nenhuma naquele dia. E o mais irritante era que ela n?o conseguia nem ficar brava com isso.

  — Que seja — murmurou, apoiando os cotovelos no balc?o com o peso de quem já desistiu de fingir controle absoluto. — E aí? Acha que se garante controlando o navio?

  — Nem fodendo vou me meter nisso. Minha cabe?a já tá explodindo nessa porcaria de navio — respondeu Luiz, agora massageando as têmporas como se isso fosse convencer alguém de que o cérebro ainda funcionava. — Parece que meus pensamentos carregam três vezes mais devagar.

  Ana bufou. Longo e audível.

  — é um vagabundo mesmo…

  N?o era exatamente um insulto. Soava mais como uma constata??o biológica, do tipo que se aceita quando se descobre que algumas pessoas realmente nasceram para fazer o mínimo necessário e ainda sair dizendo que est?o “cansadas demais pra discutir”.

  Madame, por sua vez, balan?ou a cabe?a em um gesto automático. Terminou o que restava de sua bebida, e enquanto pensava em sugerir outro nome, uma voz ressurgiu da penumbra com a clareza desconfortável de uma ideia ruim.

  — é só dar ordens pro navio… né?

  A frase veio de um canto da mesa, onde até dois segundos atrás repousava uma figura que, se n?o estivesse tecnicamente viva, podia ter passado facilmente por decora??o abandonada. A mulher mal conseguia manter os olhos alinhados, mas sua voz saiu com uma firmeza incompatível com o estado físico.

  — Vai ser bom. Achei que ia aproveitar a liberdade, mas... sinto falta de mandar em algo.

  Quer apoiar o projeto e garantir uma cópia física exclusiva de A Eternidade de Ana? Acesse nosso Apoia.se! Com uma contribui??o a partir de R$ 5,00, você n?o só ajuda a tornar este sonho realidade, como também faz parte da jornada de um autor apaixonado e determinado. ??

  Venha fazer parte dessa história! ??

  Apoia-se:

  Discord oficial da obra:

  Galeria e outros links:

  Ficaremos sem imagens por um tempo, mas logo volto a postar!

  Estou meio sem tempo e n?o est?o saindo resultados bons...

Recommended Popular Novels